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Dos impactos à defesa: mulheres, corpo-território e direitos humanos

Por Ana Luisa Queiroz e Marina Praça, educadoras populares do Instituto Pacs

Na contramão dos movimentos por direitos, temos observado na América Latina, em especial no Brasil, o avanço de diferentes tipos de manifestações ultra conservadoras. Defendemos que esse crescimento dos investimentos em estratégias de difusão do conservadorismo, muitas vezes através da desinformação e das chamadas fake news, vem em resposta ao avanço das conquistas de direitos das minorias políticas, sobretudo das mulheres, da comunidade LGBTIQA+ e de negros e negras. Não existe deslocamento de poder sem reação. Tomando em conta este cenário ampliado, fica ainda mais explícito o caráter processual dos direitos humanos, em movimento de conquistas e retrocessos, através das lutas políticas e sociais e de seus devidos contextos históricos.

Foto: Instituto Pacs

Em seus Artigos 1º e 2º, a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, e que todos, sem distinção alguma, podem invocar as garantias e as liberdades proclamadas na mesma. Por um lado, a perspectiva universalista presente na declaração é fruto de reivindicações de movimentos e organizações sociais. Por outro, é importante analisarmos quais os usos feitos pelas gramáticas generalistas e quais implicações essas abordagens trazem às minorias políticas e suas interseccionalidades.

Trazemos elementos que sustentam a necessidade de uma abordagem dos direitos humanos e dos mecanismos internacionais de denúncia através de uma perspectiva feminista racializada e da noção de corpo-território. Nosso objetivo é estabelecer uma análise crítica que venha fortalecer o espectro protetivo dos direitos humanos de fato para todas e todos. Tomamos como contextos de análise territórios atingidos pela atividade de megaprojetos e empresas transnacionais (ETNs). Este texto é um desdobramento do módulo “Direitos Humanos para todas? Mulheres em contexto de megaprojetos e empresas transnacionais”, que faz parte do curso online Direitos Humanos e Empresas: violações socioambientais e mecanismos de denúncia[1].

Ainda que com seus destaques à diversidade de raça, gênero, sexo-afetiva, de classe e geopolítica, os direitos humanos e seu aparato jurídico nasceram de uma noção de igualdade modelada e voltada para homens brancos, enquanto sujeito universal. O feminismo, principalmente o feminismo antirracista e negro, e suas práticas políticas formam expressões da desconstrução deste sujeito universal. Lançar um olhar feminista e antirracista aos direitos humanos, entre declaração, tratados e mecanismos de salvaguarda, é reavaliar criticamente suas premissas, estruturas e práticas, sob uma ótica mais sensível à diferença. Ao incluir as experiências pessoais e subjetivas nos elementos de análise das questões públicas e políticas, mudamos também a matéria do que é importante para a construção da história e para o entendimento dos conflitos.

De acordo com relatório publicado pela ONU em 2019, o Brasil ocupou o 134º lugar no ranking de representatividade feminina no Congresso[2], atrás de países como o Iraque e Arábia Saudita, que permeiam o imaginário ocidental estigmatizados como símbolos do fundamentalismo religioso e obscurantista. Esse é um dos exemplos da falta de representatividade nas instâncias do poder institucional brasileiro. Se não são as mulheres que ocupam esses espaços diretamente capazes de intervir pela seguridade dos direitos e julgamento de suas violações, estariam os homens preparados para a execução desta tarefa? As escolas jurídicas e outros ambientes educacionais formais promovem a formação necessária para a identificação e sensibilização frente às violências de gênero e de raça?

É principalmente através do ataque às mulheres, à população negra e LGBTIQA+ e aos seus direitos -igualmente humanos e duramente conquistados -, que a ofensiva conservadora se concentra e organiza. Quem tem medo da família que foge à heterocisnormatividade? Quem tem medo da mulher negra em posições de poder? Nesse sentido, é fundamental transbordar a neutralidade do universalismo e reconhecer o protagonismo das mulheres tanto nas trincheiras cotidianas de defesa dos direitos básicos, como à vida, quanto em suas atuações políticas institucionais organizadas em prol da cidadania e da liberdade.

Com formas de valoração e usos diferentes da natureza, com o olhar historicamente lapidado ao cuidado da casa e da família, as mulheres trazem contribuições que desafiam a divisão política e sexual do trabalho no capitalismo patriarcal e racista. Ao se engajar, a mulher não somente desloca seu corpo território do eixo privado, doméstico e reprodutivo da vida, para o seu suposto binômio público e produtivo. Antes, a atuação política das mulheres em seus diferentes níveis confunde essa linha divisória afirmando que a reprodução e o cuidado não são ajudas, mas trabalho, e que a política também se faz dentro e fora de casa. Para conseguir militar e se organizar, muitas vezes as mulheres iniciam seus enfrentamentos dentro de casa, posicionando-se à revelia dos maridos, pais, filhos e até de outras mulheres. É comum as defensoras de direitos humanos, principalmente frente aos megaprojetos e ETNs — constantemente vistos como mantenedores das cidades onde atuam, em função da grande dependência construída -, ficarem mal vistas, mal faladas e serem até consideradas inimigas do desenvolvimento.

Mulheres em incidência nas instituições e nos territórios

Apesar das forças invisibilizadoras e de castração do patriarcado, as mulheres têm historicamente incidido em diferentes níveis na defesa da vida, dos direitos humanos e ambientais. Na redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as mulheres latino-americanas tiveram grande importância na garantia da inclusão de igualdade de gênero no texto, com destaque para a cientista brasileira Bertha Lutz. Bertha contou com o apoio de outras delegadas do Sul Global para defender a igualdade de gênero, frente à oposição de homens e até de mulheres norte-americanas, que consideravam a pauta vulgar à época[3].

Foto: Instituto Pacs

Para além de exemplos de mulheres protagonizando a luta em defesa de seus direitos, destacamos também a atuação das mesmas em pautas que atravessam e transbordam a igualdade de gênero. Durante a ditadura civil-militar inaugurada em 1964 no Brasil, os movimentos de mulheres foram condenados à ilegalidade, assim como outros pelo país. Diferentemente de tendências europeias e estadunidenses da mesma época, a atuação das latino-americanas se dava, em sua maioria, protagonizando grupos mistos em defesa da redemocratização em seus países, e não em grupos auto-organizados exclusivamente femininos, travando dentro de seus próprios coletivos, defesas e práticas feministas.

Nos grupos de resistência majoritariamente femininos, destacavam-se as organizações de bairro e periferias urbanas, bem como os grupos de reflexão da Igreja católica e associações de mães. Neles, as mulheres se organizavam a partir de questões cotidianas. Suas reivindicações giravam em torno de demandas por maior número e qualidade de escolas, centros médicos, infraestruturas básicas, como rede elétrica e saneamento, entre outros elementos que compunham as “condições adequadas” para o desenvolvimento familiar.

Trazendo para os tempos atuais, destacamos a incansável atuação das mulheres negras periféricas em defesa da vida e contra o genocídio da população negra desenvolvido pela necropolítica estatal e seus agentes. Estas, em sua maioria mães, desenvolvem, em coletivo, repertórios de ações e mobilizam recursos em torno de suas experiências de perda, aprendendo entre si e solidariamente, em redes de ativismo. Ao denunciarem a morte de seus filhos, em sua grande maioria jovens negros, pela ação de agentes do Estado, trazem a casa para a rua e explicitam o braço da política estatal que rompe com a ordem familiar, através da tortura e de execuções (Vianna, Farias, 2011)[4]. Uma vez protagonistas políticas, as mães possuem grande potência de sensibilização e reunião simbólica de outros ativistas, sejam homens ou mulheres. Trata-se de uma insurgência política contra a violação dos direitos humanos de jovens negros, mas organizada e conduzida com profundas conexões com as construções de gênero e raciais.

Um dos movimentos organizados por mães mais conhecidos no Brasil, as Mães de Maio, luta desde 2006 por justiça. Foram 564 mortos no estado de São Paulo, em maio do mesmo ano, durante uma operação policial. Em 2019, elas lançaram um livro que reúne 23 relatos, chamado “Memorial dos Nossos Filhos Vivos”.

Em entrevista para a Carta Maior[5], a liderança Débora da Silva Maria afirma que ainda vivemos em um período ditatorial militar em todo o país:

O Brasil é um produtor de mães de maio. Vemos que só mudam o endereço e o estado das vítimas, porque o militarismo está perpetuado em nosso país. A ditadura não acabou. Está muito presente nos nossos dias e temos que acabar com ela. Pra diminuir, com certeza, 90% da violência do país, precisamos desmilitarizar a polícia, a justiça e a própria sociedade.

As dimensões dos impactos às formas de vida, aos corpos e ao território e suas resistências

Os corpos e olhares feministas são nossa base para refletir e se imbricar na realidade vivida nos territórios atingidos por megaprojetos e empresas transnacionais. Assim, construímos críticas desde as práticas políticas vinculadas à garantia da vida, à sobrevivência e às relações umbilicais com a terra, como uma natureza ampliada. Traçamos uma linha que olha para as formas de vida expressas em seus corpos vivos e ativos como uma extensão e retração do território que habitam, desde a perspectiva do corpo-terra-território.

En este argumento el cuerpo visto como territorio es en sí mismo un espacio, un territorio-lugar, que ocupa, además, un espacio en el mundo y puede vivenciar todas las emociones, sensaciones y reacciones físicas, para encontrar en él, un lugar de “resistencia”y resignificación. (HERNÁNDEZ, 2016, p.8)[6]

Algumas mulheres e suas histórias nos ajudam a sentir e pensar desde esse lugar. Antônia Melo, liderança do Movimento Xingu Vivo, foi invadida pela Hidrelétrica Belo Monte, em Altamira (Pará). Assim como ela, sua casa foi atropelada pelo empreendimento. O lar de Antônia é a extensão de seu corpo, sua comunidade, seus laços, assim como seu corpo é sua casa em escala distinta. Antônia e sua casa eram e são referências territoriais para pescadores, moradores, mulheres e jovens que se entendiam parte dali e as tinham como parte de suas identidades. “Estão me arrancando daqui, tentando apagar a memória, a vida. Belo Monte é isso, é arrancar todas as formas de vida, até que mesmo a memória seja apagada para sempre, até que não exista nenhuma raiz”, diz Antônia. Eliane Brum, em seu artigo[7] “O dia em que a casa foi expulsa de casa”, descreve essa invasão e complementa: “A violência parece ter ganhado uma dimensão tamanha dentro e fora de Antônia Melo que já não podia ser simbolizada. Virou uma literalidade que perfurou o coração de uma mulher que a tudo tinha resistido”.

Sentir no corpo os impactos e violências sofridas são parte do cotidiano das mulheres vizinhas de megaprojetos. Sentir o coração explodir quando explode uma mina. A pele rachar quando ondas de resíduos são jogados no ar. Apertar o peito ao ver os terrenos de brincar e viver sendo invadidos por dragões de aço.

A territorialidade nos constitui e se expressa na forma como nos relacionamos com o mundo. Encarna em nossos corpos como extensão da vida e das afetações vividas, numa relação indissociável. As práticas cotidianas e as paisagens dos territórios se confundem com os próprios corpos das mulheres. Nada do que acontece a um território deixa de ser sentido pelo corpo de uma mulher que faz daquele lugar morada. As mulheres sentem de forma particular as lutas territoriais, pois além dos impactos gerais, vivenciam a opressão estrutural do patriarcado sobre suas vidas. Em muitos casos, dentro das suas próprias organizações, comunidades e casas.

Diante de todos os impactos e violações, as mulheres necessitam (re)existir. Desde os seus territórios e encorpamentos coletivos, elas se juntam e ganham força e, em estado de permanente alertas, seus corpos se unem e enfrentam as arbitrariedades de um modelo que não foi feito por nós e nem para nós. Nas suas formas de (re)existências, arrumam alternativas para dar conta das negações e violências vividas. Nas lutas por sobrevivência, mesmo vivendo às margens e atravessadas pelos megaprojetos, elas constroem suas histórias, fazem sua ciência, criam seus cotidianos coletivos de manutenção das formas de viver. É a criação da vida nos ambientes marcados pelas empresas transnacionais e megaprojetos de morte.

As (re)existências são estratégias vivas para visibilizar contextos de expropriação e exploração buscando a redefinição da vida, a partir das brechas, dos atalhos, dos escapes, das potências imateriais, das forças vindas dos mistérios, construindo territórios de dignidade e autodeterminação. Esses corpos coletivos femininos desde os sentidos trazem consigo a experiência inventiva como enfrentamento da materialidade dos conflitos.

Na contracorrente das temporalidades, das relações e da organização do modelo de desenvolvimento hegemônico, as mulheres protagonizam a defesa dos bens comuns e da vida. Através da mobilização de suas comunidades, do diálogo com a juventude, da ação direta territorial e da auto-organização, as mulheres tem conquistado espaço e visibilidade nos enfrentamentos aos megaprojetos e na resistência por seus territórios.

A relação específica de impactação dos megaprojetos e da atuação de empresas transnacionais sobre as mulheres

A relação entre o agravamento das violações dos direitos humanos e as mulheres a partir da implementação de megaprojetos ou da atuação das ETNs pode não ser óbvia à primeira vista. No entanto, segundo dados da cartilha Mulheres e Mineração no Brasil, de produção do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE)[8], 31% dos casos de violência contra a mulher se concentram nos 7 estados mineradores do Brasil. Dados como esse nos fazem perguntar o que há de particular na relação entre a atuação de ETNs, megaprojetos e direitos humanos das mulheres.

De maneira geral, toda atividade que gere mais afazeres no campo doméstico, tende a sobrecarregar o trabalho da mulher, aumentando o valor de trabalho invisibilizado e, por consequência, não pago. Diferentes estudos apontam para a existência de uma tipificação dos impactos que megaprojetos causam desde que aportam nos territórios, até o fim de sua operação. Ainda que com variações em função das diferentes naturezas de suas atividades, é possível identificar um conjunto de consequências negativas gerais, mas que revelam faces mais complexas e ameaçadoras às mulheres.

Alguns exemplos de impactos já previstos e suas implicações aos direitos humanos, no que diz respeito à vulnerabilização da vida das mulheres são: o fortalecimento da divisão sexual do trabalho e falta de infraestrutura e segurança no trabalho — através do reforço da masculinização e da não adaptação dos ambientais de trabalho para a recpção de mão-obra feminina (como construção de banheiros e uniformes adequados); a contratação grandes volumes de trabalhadores estrangeiros aos territórios — com isso eleva-se, dentre outras coisas, os indíces de violência sexual, comprometendo a mobilidade e a segurança das mulheres jovens e adultas[9]os filhos dos megaprojetos — podendo variar conforme a atividade produtiva (filhos da mineração, filhos do vento), as mulheres vivem a maternidade solo, que também é um dos mecanismos de empobrecimento das mesmas — em diversos casos a gravidez é fruto do abuso e as vítimas dissuadidas de seu direito legal de interrupção da gestação; precarização e contaminação — às mulheres, principalmente às mulheres negras, ficam destinados os serviços gerais, de limpeza e lida com rejeitos e outros tóxicos, em sua maioria, através de vínculos empregatícios terceirizados ou informais; aumento do trabalho reprodutivo — em função da poluição ambiental, aumentam não só o número e a frequência de pessoas da família doentes que precisam ser cuidadas, mas também a carga de trabalho de limpeza e manutenção da casa, que costumam ficar sobre responsabilidade das mulheres, sobrecarregando-as mais; aumento da violência doméstica — como resultado muitas vezes direto do aumento do consumo de pelo aumento do consumo de drogas lícitas e ilícitas; perda da soberania alimentar — a chegada e operação de megraprojetos alteram a georgrafia dos territórios, podendo impedir práticas não monetarizadas, mas fundamentais para a segurança alimentar e nutricional, de plantio em terreiros e quintais, além de não serem incluídas nas negociações reparatórias nos casos de crimes que atingem diretamente os terrenos das casas, destruindo-os; agravamento da dependência econômica da mulher — para além do igual cenário de salários desiguais que encontramos no mercado de trabalho como um todo, a constante masculinização da mão-obra diminui a possibilidade de inclusão das mulheres e reforça sua dependência financeira em relação aos maridos, pais e outros familiares; Reconhecimento só do homem como responsável da casa: existem casos nos quais só os homens são oficialmente reconhecidos como atingidos e recebem indenizações, o que atinge a autonomia das mulheres e por vezes o valor acaba não sendo gasto com as despesas de reprodução da casa e da família. Reforçando um ciclo de violência de gênero e de invizibilidade do trabalho reprodutivo da mulher.

Ser mulher e defensora de direitos humanos e ambientais, entre riscos e possibilidades

A defesa dos direitos humanos esbarra em diferentes desafios e riscos. Segundo relatório divulgado pela Frontline Defenders[10], em 2019 o Brasil ocupou a quarta posição no ranking que estabelece os países mais perigosos para a atuação de defendores e defensoras. Em primeiro lugar está a Colômbia, seguida pelas Filipinas e Honduras, respectivamente. O cenário brasileiro geral é de hostil para os defensores de direitos humanos e ambientais, no entanto, ao olharmos através da perspectiva de gênero, a situação se agrava. Segundo Michel Forst, relator especial das Nações Unidas sobre a situação de defensores dos direitos humanos, as mulheres defensoras são as primeiras a serem atacadas pelo fato em si de serem mulheres.

Foto: Instituto Pacs

De acordo com o relatório produzido por Forst[11], o aumento de posicionamentos misóginos e lgbtqia+fóbicos de líderes políticos vivenciado nos últimos anos tem pesado para a reconstrução da normalização da violência contra as mulheres defensoras. Dentre os diferentes ataques, essas mulheres passam por humilhações públicas, tem sua intimidade exposta a público, são constantemente apontadas como mães ruins, terroristas, traidoras, além de serem violentadas e assassinadas.

A história e memória de Berta Cáceres são um dos exemplos mais radicais de execução de mulheres que estão na linha de frente. Liderança feminista hondurenha, Berta foi assassinada em sua própria casa por lutar contra a apropriação e privatização do rio Gualcarque por um megaprojeto hidrelétrico na região da população Lenca, um rio considerado sagrado e essencial para a sobrevivência de sua etnia indígena. À frente do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (Copinh), Berta liderou bloqueios de estradas, sabotagem de equipamentos e piquetes em frente à empresa hondurenha Desarrollos Energéticos S.A. (DESA), responsável pelo projeto. Sua casa, seu lugar de proteção, foi o lugar escolhido por assassinos de aluguel para acabar com sua vida. Berta era perseguida por lutar contra empreiteiras, empresas energéticas e instituições financeiras internacionais, mas também por ser mulher feminista em suas formas de ser e fazer política.

Outra história interrompida pela violência intolerante do capitalismo racista e patriarcal foi de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro. Mulher negra, favelada, socióloga e bissexual, Marielle foi assassinada enquanto voltava de uma agenda política de formação e articulação com outras mulheres negras. O carro onde estava foi alvejado com 13 tiros que invadiram seu corpo e o do motorista Anderson Gomes. Sua luta cotidiana era, entre outras, de exposição e enfrentamento da necropolítica na cidade, contra o genocídio da população negra e periférica, pelos direitos das mulheres e da população LGBTIQA+. Seu legado hoje segue nas articulações e movimentos que compunha, que seguem na luta em defesa de uma outra cidade, mais democrática, justa e plural.

Ainda são poucos os instrumentos específicos que podem ser acionados internacionalmente para a denúncia de casos como os assassinatos de Marielle Franco e Berta Cáceres, ou ainda sobre violações como as sofridas por Antônia Melo em Altamira. A partir da constatação de que as mulheres não gozavam dos direitos humanos da mesma forma que os homens, em espectro geral no globo, em 1979 foi escrita a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher da ONU, entrando em vigor em 1981, onde qualquer discriminação contra a mulher passou a ser entendida como uma ofensa à igualdade e à dignidade humana. No entanto, de todas as convenções, esta é uma das que mais possuem reservas em sua ratificação, o que reduz significativamente sua eficácia. Somente em 1988, após a constituinte, que o Brasil retirou suas reservas e ratificou a Convenção em sua integralidade.

Em linhas gerais, a Convenção estabelece obrigações para a eliminação de toda forma de discriminação contra a mulher na direção da igualdade, prevê direitos e articula demandas de intervenção e abordagem estatal sobre atores privados, atuando através do seu respectivo Comitê. Desde 1999, através de Protocolo Facultativo aprovado pela ONU, qualquer pessoa ou grupo de pessoas que se considere vítima de violação de direitos pordem entrar com petições no Comitê. No Brasil, temos uma experiência de condenação, o caso de Alyne Pimentel Teixeira, que teve seu direito à saúde, à vida e de acesso à justiça violado.

Alyne era uma mulher jovem, negra e mãe de uma criança de cinco anos, foi vítima de um sistema de saúde precário e inadequado. Grávida de seis meses, Alyne morreu após ter buscado atendimento em hospitais público e privado, por demora na constatação de morte do feto e encaminhamento adequado. A família entrou com uma ação na justiça brasileira e aguardou de 2002 à 2007, quando na ausência de julgamento, levou o caso para o Comitê CEDAW. Em 2011, o Comitê fez recomendações de melhoria do serviço público de saúde no Brasil e determinou o pagamento de indenização à família de Alyne por parte do Estado brasileiro. O caso foi o único apresentado e o único decidido pelo Comitê CEDAW com relação ao Brasil até hoje.

Pensando caminhos para seguir em movimento

Quando olhamos para a justiça brasileira e para o direito internacional, podemos ter uma impressão desmotivadora. Isso porque os resultados das ações, sobretudo as investidas no campo internacional, necessitam de um conjunto complexo de fatores para assegurar sua eficácia. No caso do Comitê CEDAW, por exemplo, mas não só, é preciso demonstrar o esgotamento dos recursos internos, juntar recursos humanos e financeiros para construção da ação e entrega da mesma em Genebra, e articular outras estratégias para sensibilização da sociedade e do corpo jurídico e diplomático envolvido, para assegurar que as convenções ratificadas tenham de fato por de lei. Nesse sentido, o tempo do direito internacional acaba muitas vezes mais próximo do tempo dos megaprojetos, e mais distante dos territórios e das pessoas atingidas.

Trouxemos nesse texto as especificidades experimentadas pelas mulheres em contextos de atuação de empresas e megaprojetos, a partir de duas pontas (que se inter-relacionam): de um lado como vítimas das violações, de outro enquanto defensoras de direitos humanos e ambientais. É certo que falar desde um Brasil marcado pela colonização, pelo racismo, pelo capitalismo e pelo patriarcado, faz necessário frisar que, em linhas gerais, defender direitos e o Bem Viver não é um terreno seguro para ninguém. O que buscamos demonstrar através de uma leitura de gênero e, com muitas limitações, também racializada, é que se faz necessário, além da combinação de abordagens e métodos, a inclusão do olhar e a valorização do fazer dos sujeitos e sujeitas diversos na defesa dos direitos humanos e ambientais.

Ao misturar o público e o privado, o fazer produtivo e o reprodutivo, as mulheres deslocam a política para dentro de casa e visibilizam esse deslocamento. A valorização das organizações entre mulheres, de suas redes de solidariedade territoriais e multi-situadas, a visibilização de seu trabalho e lutas cotidianas enquanto ações políticas e o encorajamento das mesmas para a ocupação dos espaços de poder em seus diferentes níveis e esferas é um caminho necessário para a construção de um mundo mais justo.

Não foi à toa que Berta Cáceres foi assassinada dentro de sua própria casa, seu lugar de descanso, de alimentar e reproduzir suas formas de viver fora da visibilidade dos atos, congressos, assembleias. Não são aleatórios os processos de difamação, as ameaças e a forma como são assassinadas as mulheres que se colocam na linha de frente na defesa de suas famílias, comunidades e territórios. As violações direcionadas aos corpos-territórios se amparam em estratégias alimentadas pelo mesmo patriarcado que extrai valor sem remuneração das mulheres que cuidam da reprodução de suas famílias. Qualquer esforço que vise a ampliação de direitos no contexto de operação de empresas e megaprojetos precisa sentir-pensar desde esses lugares.

O artigo está disponível para download na Biblioteca Berta Cáceres.

[1] Para maiores informações sobre o curso e seus materiais públicos para consulta, acesse a página https://empresasviolacoesdh.com.br/

[2] Acessado em 07 de julho de 2020 https://blog.inteligov.com.br/mulheres-congresso-nacional/

[3] Acessado em 08 de julho de 2020 https://nacoesunidas.org/exclusivo-diplomata-brasileira-foi-essencial-para-mencao-a-igualdade-de-genero-na-carta-da-onu/

[4] VIANNA, Adriana e FARIAS, Juliana. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cad. Pagu [online]. 2011, n.37, pp.79–116. ISSN 0104–8333. https://doi.org/10.1590/S0104-83332011000200004

[5] Acessado em 09 de julho de 2020 https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/-O-Brasil-e-um-produtor-de-maes-de-maio-/5/33320

[6] HERNÁNDEZ, Delmy Tania (2016). Una mirada muy otra a los territorios-Cuerpos femeninos. En: SOLAR, Revista de Filosofía Iberoamericana, Año12 Vol. 12–1.

[7] O dia em que a casa foi expulsa de casa — Coluna Eliane Brum no El País — 14/09/2015 — acesso em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/14/opinion/1442235958_647873.html

[8] Acessado em 09 de julho de 2020 http://justicanostrilhos.org/wp-content/uploads/2019/01/mulheres-e-mineracao-final-2.pdf

[9] Durante a construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, os casos de estupro aumentaram em 208% em Porto Velho, acessado em 09 de julho de 2020 https://www.camara.leg.br/noticias/398607-ativista-denuncia-exploracao-sexual-de-criancas-em-areas-de-barragens/

[10] Acessado em 09 de julho de 2020 https://www.cartacapital.com.br/sociedade/brasil-foi-o-4o-pais-que-mais-matou-ativistas-de-direitos-humanos-em-2019/

[11] Acessado em 08 de julho de 2020 https://nacoesunidas.org/defensoras-dos-direitos-humanos-enfrentam-aumento-de-violencia-alerta-relator-especial/