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Militarização como Megaprojeto Transnacional: tecnologias de vigilância e resistências na luta pelo embargo militar

Por Gizele Martins , Comunicadora Comunitária da favela da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro

As favelas da cidade do Rio de Janeiro passaram por grandes impactos durante o período dos megaeventos no Brasil: remoções, Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), construção de muros dividindo a favela dos bairros, instalação do exército, dentre diversos outros problemas enfrentados pelas populações que habitam esses territórios. Foi nesse mesmo período que chegaram muitos aparatos militares, assim como inúmeras tecnologias de vigilância para controle da população local.

Foto: Douglas Lopes | Maré de Notícias Online

O Complexo do Alemão, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi uma das favelas que recebeu a UPP. Nela, torres de controle para vigilância da população foram construídas dentro das casas dos moradores. Os policiais escolhiam as casas estrategicamente, aquelas que eles podiam fazer vigilância das principais ruas de acesso à favela. Ao todo, foram 38 favelas que receberam as UPPs, sendo a maioria delas na Zona Sul do Rio, local de grande interesse imobiliário. Durante esse mesmo período de chegada das UPPs, drones começaram a ser utilizados pelas polícias dentro das favelas.

Nessa mesma época, o Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte do Rio, recebeu durante um ano e cinco meses (entre 2014 e 2015) o Exército brasileiro. Período que coincidiu com a realização da Copa do Mundo. Foi na Maré que eles começaram a utilizar o “fichamento”: técnica de vigilância para revistar quem entrava e saía da favela. Os soldados ainda tiravam fotos dos documentos para saber se a pessoa tinha alguma passagem pela polícia. Anos mais tarde, em 2018, na Intervenção Federal Militar que ocorreu em todo o Rio de Janeiro, esta técnica foi adotada e utilizada em todas as outras favelas e periferias onde havia a presença do exército.

Foi durante os megaeventos no Brasil que a LAAD Defense e Security, considerada a maior feira de armas da América Latina, passou a ser realizadas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em matéria publicada no Brasil de Fato, em 2017, diz que “O Brasil se tornou o quinto maior comprador destas técnicas militares e de vigilância naquela época, sendo ainda um dos principais compradores de tecnologia e de treinamento militar israelense”.

O que significa que uma parcela destas novas técnicas, sejam elas militares ou de vigilância, que chegaram no Brasil durante os anos de megaeventos, foi exposta nessas feiras e veio de países como Israel. Estado que há décadas é conhecido no mundo por segregar o território palestino e fazer desta população um grande laboratório da política de morte.

As empresas que fabricam a morte

Soraya Misleh, palestina brasileira, jornalista, pesquisadora e militante, cita algumas destas empresas israelenses que chegaram durante os jogos esportivos e que até hoje estão presentes nas favelas do Rio, “entre elas, a Elbit Systems, a mais importante empresa de armas de Israel, implicada no fornecimento de sistemas de vigilância e tecnologias para o muro do apartheid e de drones usados nos bombardeios à faixa de Gaza, entre outros equipamentos à ocupação na Palestina. E também a Hewlett Packard, que fornece sistema de biometria e cartões de identificação para o apartheid israelense”, disse.

Além das empresas já citadas, segundo Soraya, há também a G4S, “com sistemas aos cárceres em que são colocados os presos políticos palestinos, inclusive mulheres e crianças, submetidos a tortura institucionalizada, e da Rafael Defense, implicada nos crimes contra a humanidade cometidos desde a Nakba[1], que produz mísseis cujo principal comprador é o Brasil, entre outros produtos para a morte”, afirmou.

Para Bruno Huberman, pesquisador das relações Brasil e Israel, existem diversas empresas militares israelenses com atuação historicamente no Brasil, como a Elbit, AEL e a IAI. De acordo com ele, o mais importante é sua penetração entre as instituições brasileiras, pois estas empresas têm bom trânsito nas Forças Armadas, na Polícia Federal, em diversas polícias estaduais, como do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, e também com associações comerciais.

Ainda de acordo com Huberman, o Brasil tem se mantido como um dos dez maiores importadores de armas de Israel desde 2007, quando foi firmado o Acordo de Livre Comércio entre Mercosul e Israel, que abriu as portas do mercado da região aos israelenses. “Apenas para as Forças Armadas importaram 1 bilhão de tecnologias militares israelenses em 2014. Além de vender diretamente para essas instituições responsáveis pelo poder coercitivo do Estado brasileiro. As empresas israelenses têm adquirido empresas privadas militares brasileiras, formando joint-ventures. A presença destas corporações no Brasil reforça o paralelo racista entre populações moradoras de favelas e negras no Brasil como “ameaças internas” tal qual seriam os palestinos, estigmatizados como terroristas”, falou.

Huberman explica ainda que as empresas comercializam as suas técnicas e tecnologias de vigilância, assassinato, dispersão de multidão e confinamento socioespacial como universalmente adaptáveis a qualquer localidade no qual exista um “conflito de baixa intensidade”, como seria o conflito contra os palestinos e contra os traficantes de droga no Brasil. “Isso, na realidade, esconde as políticas racistas das classes dominantes israelenses e brasileiras interessadas na pacificação dos seus subalternos para manter a violência como um fator importante do processo de acumulação de capital e dominação de classe”, finalizou.

Embargo militar: Favela e Palestina denunciam aparatos bélicos e de vigilância

Há quase duas décadas existe no Rio de Janeiro a ‘Campanha: Caveirão Não!’. Ela surgiu em 2006 para denunciar a chegada dos carros blindados da Polícia Militar do Rio de Janeiro, popularmente conhecidos até os dias de hoje como “caveirão”. De lá para cá, a militarização do território favelado só aumentou, cada vez mais aparatos militares e de tecnologia de vigilância chegaram no Brasil e, especificamente, nas favelas e periferias do Rio de Janeiro.

Diante disso, movimentos de mães e familiares vítimas da violência estatal, assim como os movimentos de favelas e periferias do Rio, têm feito uma luta incansável para denunciar tamanhas violações de direitos que os seus territórios e vidas sofrem. Além da Campanha: Caveirão Não!, estes mesmos movimentos organizam há cinco anos o Julho Negro, sendo esta uma atividade internacional de mobilização e denúncia contra o racismo, o apartheid e a militarização no mundo.

Desde o surgimento do Julho Negro, atividades conjuntas aos palestinos, mexicanos, colombianos, sul-africanos, indianos, chilenos, dentre outros movimentos, têm sido feita com o objetivo de internacionalizar a luta, já que as opressões são bem semelhantes. Para Fransergio Goulart, do movimento de favelas do Rio de Janeiro, um dos coordenadores da Organização Direito à Memória e Justiça Racial e, também, um dos organizadores do Julho Negro, diz que uma atividade como a do Julho Negro é importante por debater a questão do racismo, do apartheid e da militarização em nível mundial. “Formas muito semelhantes de mortes e controle acontecem no mundo inteiro, por isso, o Julho Negro, com militantes e movimentos de inúmeros outros países, é importante por debatermos essas semelhanças em nível internacional, além de tiramos estratégias de lutas em comum”, declarou.

Para finalizar, Fransergio falou ainda sobre a campanha internacional por Embargo Militar, organizada pelo Movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). Para ele, pedir por embargo militar é reduzir mortes. “Esta é a forma para que a gente morra menos. E, para além da redução no número de mortes, a gente pode desestruturar de alguma forma, mesmo que sutil, a questão da economia desses países. Afinal, a gente sabe que a economia desses países também se sustenta em cima de uma produção de armas e de tecnologias que produzem as mortes. Por isso, o embargo militar é de extrema importância”, concluiu.


[1] Catástrofe com a criação do Estado racista de Israel em 15 de maio de 1948, mediante limpeza étnica planejada