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#MulheresTerritóriosdeLuta: a fé como respiro diante de um cotidiano marcado pelos megaprojetos

A entrevistada de hoje da série com lutadoras de territórios da América Latina é Sandra Vita, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), em Minas Gerais. Sandra participou do sétimo episódio do Ciclo de Debates da Campanha #MulheresTerritóriosdeLuta, que teve como tema “Mulheres e Territórios Impactados pela Vale S.A.”. A transmissão ao vivo está disponível no nosso canal do Youtube. A entrevista foi realizada em 2019 por Marina Praça, coordenadora e educadora popular, e Ana Luisa Queiroz, pesquisadora e educadora popular, ambas do Instituto Pacs.

Sandra Vita | Foto: Acervo pessoal

PACS: O que é luta para você? O que te movimenta?

Sandra: Luta é o que vejo como forma de resistir e ir em busca daquilo que a gente defende como sendo o melhor para todos aqueles que estão à minha volta. Além da minha família, é claro, as pessoas que convivem comigo, aqueles que fazem parte da nossa casa comum.

Defender nossos direitos virou correr atrás deles, já que estão sendo arrancados, e vão continuar sendo se a gente não fizer luta. Então luta para mim é defender aquilo que é nosso e que as pessoas querem tirar. E que a gente tem chamado também de violação de direito.

O mal que nos aflige, a questão minerária, os grandes empreendimentos que chegam e assolam a vida do povo brasileiro, a vida da mulherada, a vida das nossas crianças e nossos idosos com requinte de crueldade. Precisamos resistir. É se colocar diante dessas situações e dizer “não”. Dizer que a gente não aceita! Se tiver 1% de chance de dar certo, se tiver 1% de chance de a vida valer a pena, eu acredito nesse 1%. É claro que acima de tudo, eu acredito em Deus, porque é a fé que nos move. Eu creio que essa luta um dia vai dar certo. Ainda que eu não veja, meus filhos verão, meus netos verão, e isso me move.

PACS: Como você se entendeu enquanto mulher ao longo da sua trajetória de vida e de luta?

Sandra: Na grande maioria das vezes, eu me entendi como alguém que foi diminuída. Diminuída no sentido de condição de fazer, de ser invisibilizada, culpada e muito ocupada. Muito embora, muitas das vezes nós somos sempre fragilizadas. E dizer que nós somos fortes, que nós somos resistentes, que a gente luta com emoção, a gente luta com coração, que a nossa vida é diferente, que nós somos diferentes, que a gente pensa não com a razão, a gente pensa com coração e age com ele. Tentam banalizar, invisibilizar, nos colocar como menor, como pior no que fazemos, nos colocar como seres que não tem muita significância. Mas eu também aprendi que isso nunca foi verdade. Que foi só uma forma de nos controlar para nos enfraquecer e deturpar todas as coisas que a gente tem coragem de fazer e que os homens não têm. Porque nós somos coração. Porque nós somos emoção. Nós somos muito capazes.

PACS: E você se vê nas mulheres mais velhas, nas mulheres do seu passado, nas suas ancestrais?

Sandra: Sim, vejo. Eu só sou o que sou por isso, né? Eu só sou o que sou porque eu aprendi com alguém, alguém deixou um legado. Alguém fez antes de mim. Muitas das coisas que eu faço hoje são porque alguém fez um dia. Então não tem nada de novo. Na verdade, a gente pode até inovar em algumas coisas, mas o básico, a base, ela veio do passado. Para que eu esteja aqui agora falando dessas coisas, mulheres tiveram que morrer. Outras mulheres tiveram que ser tombadas pra garantir a minha fala, para garantir a minha liberdade, pra garantir o meu espaço, pra garantir que eu pudesse puxar uma luta, pra garantir que eu pudesse falar na frente de qualquer homem que eu quiser falar, o que eu quiser falar. Elas garantiram que eu pudesse ser o que eu sou hoje, por causa de tudo que elas enfrentaram, por causa de todo o tratamento que elas tiveram… Eu me vejo sim, muito nas mulheres do passado, que construíram uma luta, que foram para frente, que levantaram a bandeira, que não tiveram medo e que morreram por isso. Derramaram seu sangue por causa disso.

PACS: E enquanto a mulher de luta que você é hoje, como você sente a presença dos impactos da mineração? Como você sente isso em você?

Sandra: A princípio, eu sinto muita raiva. Depois da raiva, eu sinto uma impotência imensa, porque a Vale adoeceu minha família. A Vale adoeceu minhas filhas. A Vale adoeceu minha neta. A Vale adoece as pessoas por onde ela passa. E esses impactos chegam, não só para mim, de uma forma muito bruta, de uma forma muito grande. Não é de mim só, mas de todas as pessoas que estão morrendo por causa da Vale. E aquelas que estão tendo morte em vida, porque, sim, o que acontece em diversos lugares aí, é isso: é uma morte em vida.

É o sofrimento que está invisibilizado porque as autoridades não querem saber disso. As autoridades estão a favor do empreendedor e não estão a favor das pessoas. Não importa onde a mineração esteja, não importa que seja a Vale. Onde tem um complexo minerário, tem vítima, ainda que não seja fatal. E eu estou falando isso hoje por nós, Morro D’Água Quente, Catas Altas. Eu estou falando isso por Barão de Cocais, que vive o trauma, o terror, o pavor da lama invisível até os dias de hoje. Eu estou falando isso por Bento Rodrigues, que teve suas vidas assoladas, foram arrancadas do seu território, e fazem quase 6 anos agora que as pessoas que foram enterradas vivas e as suas situações ainda não foram resolvidas. E também por Brumadinho, com tantas famílias que passaram por tudo que passaram, por toda perda que sofreram. Alguns corpos que não foram identificados, outros que não foram localizados… É uma luta e um sofrimento muito grande e não tem como eu sofrer e sentir a minha dor e não sentir a dor do outro. A dor é coletiva. A luta é coletiva e a dor também é.

PACS: E, nesse processo, como você vê o seu corpo? O que você carrega nele?

Sandra: Eu não tive meu corpo violentado, abusado ou desrespeitado pelo megaprojeto mineral, como outras mulheres têm. Mas também eu não tenho corpo cuidado como muitas mulheres. Eu gostaria de me voltar para isso, ter tempo para os cuidados pessoais, mas a gente abre mão de se cuidar por todo resto e pela luta. O impacto no meu corpo é o impacto de sentir a dor que não é uma dor física, que é uma dor emocional. É uma dor no peito, é uma dor no coração de ver tanta coisa acontecendo e de sentir tanta vontade, tanto desejo de poder fazer algo. Por mais que a gente tente dar forma, que a gente consiga tentar, pedir ajuda, denunciar, ir pros espaços e tentar aprender alguma coisa, fazer algumas estratégias, ainda assim a gente não consegue avançar pra fazer com que tudo isso mude.

PACS: E como é respirar em meio a todos esses conflitos? De onde tirar oxigênio para seguir na luta?

Sandra: O fato de vocês estarem aqui me dá força para seguir, me faz respirar. Falar da situação vivida aqui, contar os impactos vividos por companheiras e companheiros em Barão, de Bento, de Brumadinho, e ter esses encontros são respiros para mim. Ir aos lugares para denunciar, porque é a própria luta que me motiva e são lugares que peço socorro também. E quando as pessoas reconhecem nossas lutas. Saber que tem outras pessoas que estão na luta! Mas também sofro muito, sigo porque eu creio em Deus. Eu digo que eu sou Cristã Evangélica. E cristão é quem segue Cristo. Quem dera que eu conseguisse seguir Cristo. Eu não consigo, não, mas eu tenho que crer, né? Eu creio que é Cristo quem me move, no sentido de me fortalecer e que as misericórdias se renovam todo dia sobre minha vida. Eu creio muito nisso. Então é o Senhor quem me fortalece. E, para além disso, aí eu creio também, que é ele quem coloca no meu caminho as pessoas que precisam estar no meu caminho para me fortalecer nessa caminhada. É o cuidado de Deus e de Cristo na minha vida, de colocar as pessoas no meu caminho para que elas possam contribuir com isso.

Então, é a própria luta, abaixo de Deus, no meu entendimento, que me fortalece. Eu fico pensando, às vezes, que eu sou um ser muito político. E eu sou esse ser, assim, de luta desde sempre. Eu não queria ser assim, mas o que que eu ia ser?

PACS: E no cotidiano, nas coisas pequenas? O que você acha que te dá um respiro no seu dia-a-dia?

Sandra: A gente não tem muito tempo para ficar sem pensar no que fazer, porque sempre que não tem uma coisa, tem outra. E quem se envolve com o povo, falaram ontem que é bruxa, eu não vejo como bruxa, mas porque eles chamam a gente de outras coisas, de vagabunda, desocupadas, baderneiras, sem serviço, que “está precisando de homem”. É coisa desse tipo “Na hora que arrumar um homem, para”, mas, assim, na realidade, quando está no sangue — porque tá no sangue! Eu não sei nem como, mas está no sangue — tudo para a gente é um motivo para luta.

PACS: Esse prazer, ao mesmo tempo que você fala que você não quer ser isso, também existe em ser e em estar na luta, né?

Sandra: Eu tenho muito prazer. Como eu contei, por exemplo, como foi uma experiência. A gente baixou no ônibus aqui e foi parar lá do Pará, porque era o lançamento do MAM. Isso dá prazer. É por causa da viagem? Não. A viagem é cansativa, a viagem é desgastante. Leva criança, no risco da estrada, mas dá prazer e dá prazer demais porque tem umas coisas que, assim, que arrepiam o corpo. Que bate forte o coração e que você vê que, verdadeiramente, você está de alguma forma ali representada por várias pessoas, que estão falando a mesma língua, que estão na mesma luta e que, sim, um dia vai dar certo. Dá prazer. O primeiro ato de rebeldia, quando a gente conseguiu invadir a Câmara por causa do Código da Mineração, e a gente conseguiu travar o processo, que ela já estava travando a pauta, a gente conseguiu continuar travando e não deixamos que votassem. E que a gente conseguiu, com aquela galera toda lá, claro que nós éramos só o povo do Morro, mas nós éramos uma Van! E a gente nunca tinha ido num espaço de luta e nós éramos do Morro na Van e nós rodamos daqui até Brasília. Nós chegamos lá quebrada; E fomos para Câmara, nunca tinha pisado em Brasília, e aí quando eles mudam a data de votação, porque souberam que tinha aquele grupo lá, e a gente consegue através daquele povo que morava lá, introduzir a gente na Câmara, e a gente consegue invadir a plenária. E no grito, a gente conseguir chamar audiência pública nos Estados minerários. Aquilo foi muito, muito, muito gratificante. Você entender, assim, “ó, é verdade, a gente pode”, “o povo pode”. E aí, quando nós tivemos a audiência no nosso estado, foi a audiência que mais lotou. Foi a audiência mais participativa, foi a audiência que a gente arrancou o povo deles da mesa, e colocou o nosso no grito! Então, assim, “ah, mas tudo vocês resolvem no grito”. Algumas coisas você tem que resolver no grito, sim. Então tem esses prazeres, mas é prazer que vai continuar? É o prazer momentâneo, que importa! E a gente faz um monte de bobagem, a gente faz da nossa vivência, nós não somos técnicos, nós não. A gente fala da nossa realidade.

PACS: Mas técnico fala um monte de bobagem também…

Sandra: Mas a gente pensa que não, né? Porque a gente pensa que o povo está lá, e sabe tudo, né? Igual a Vale. Na hora que ela lá, aquele monte de gente, que acha aqueles dados lá e que expõe aquilo. Nossa, aí vai caindo baba, você vai limpando. Mas a gente fala de nós, fala da nossa realidade. Numa audiência em Conceição do Mato Dentro nós fomos apoiar, numa van, e já sabíamos como reagir, falar e reivindicar nossos direitos. E a empresa estava com muita segurança, com muitos olheiros, toda articulada. E o povo de Conceição estava frio na época. O povo das comunidades rurais estavam lá. Muita gente com criança no colo, mas assim muita gente. Povo muito simples. E a polícia com uma postura, assim, de se impor mesmo pra cima da gente, pra cima do pessoal. Nós estávamos e fizemos cartazes, fizemos faixas para constranger os empreendedores. Era essa nossa estratégia! E aí na hora da apresentação do empreendimento, a gente fez um combinado, que quanto mais a gente tirasse a atenção deles, menos eles vão conseguir passar o que eles precisavam. E a gente tinha um promotor na mesa, um promotor nosso. Descobrimos como fazer uma sombra com nossos cartazes e atrapalhar a leitura do cara, E aí o cara não conseguia ler, porque estava preso na leitura, e porque ele não conseguia ler, ele não conseguia explicar o projeto. Porque ele estava preso no texto, ele não conhecia o projeto.

Falávamos para o povo de Conceição “vocês não precisam ter medo, não precisa nem saber falar, a gente nem sabe. A gente vai lá e fala assim mesmo.” Tinha muita política, mas não nos intimidamos, éramos muitos. E aí o pessoal começou ir para frente também. Vários deles foram. Vários moradores, e foram porque a gente foi junto com eles, articulados. Cada um falava num momento. E antes disso nós fizemos ato na rua, reproduzindo o crime da Vale e Samarco em Bento Rodrigues. Fizemos um ato no meio da rua, paramos com a carraiada, coisa que a gente não planejou aconteceu. E foi muito massa, porque o povo chorou. Assim, foi comovente o negócio. E isso acabou chamando um pouco para audiência à noite. Esses são os ganhos que a gente tem.

A gente conseguiu atrasar muito o processo em Conceição, por causa disso. E aí o povo também começou a entender que eles precisavam ir para as audiências. Começaram a fazer as assembleias populares em Conceição, e eles conseguiram avançar. Só que como que avança com uma AngloAmérica, sabe? Avança até certo ponto, aí depois foi aprovado projeto, e era para loteamento de barragem. Então, assim, por mais que você ganhe um tempo pra respirar, você ganha um tempo para pensar e ele precisam lá, na verdade, é serem retirados, desapropriados, porque eles estão embaixo da barragem. Aí eles estão já estão negociando, parte deles estão negociando processo de desapropriação. É assim: extremamente difícil. Mas tem sim, tem esses momentos.

Aí tem aqueles momentos também, o dia que eu não quero pensar em nada, que eu não quero saber de nada, que eu não quero conversar sobre isso, que eu não quero falar sobre isso, eu gosto muito de ficar sozinha. Eu gosto, eu gosto da minha presença, eu gosto da minha companhia. Eu amo estar na minha companhia, então, assim, a Sara fica muito com a minha mãe, e eu fico aqui em casa. E eu gosto muito de jogar buraco…no celular com robô. E aí fica eu e Deus aqui.

PACS: Onde que você acha que está a arte em você? E aí a arte ela tem múltiplas possibilidades, né?

Sandra: Nossa, arte? Eu? A arte em mim, está nos outros. Eu sou mestre nisso.

PACS : Mas você tem arte da mobilização, né? Você tem a arte do encontro…

Sandra: Eu consigo mobilizar. Tem umas mobilizações que eu consigo fazer porque eu percebo que as pessoas gostam muito de agito, né?

PACS — Então você tem a arte do agito, a arte do encontro…

Sim, mas aí depende do encontro. E normalmente, quem participa desses espaços, é o público mais jovem e eles vão mesmo.

Tem umas histórias sobre isso. Nós fizemos uma atividade na câmara, ia ter uma votação de plenária, e o Prefeito estava pedindo, no projeto, pra votar os cargos comissionados. Só sei que o projeto não atendia de maneira alguma a comunidade, só interesse dele, interesse político partidário dele. E aí, nós tínhamos conseguido os votos para não passar o projeto e aí minha prima ligou pra mim e faltava 20 minutos pras 16, eu largo do serviço 16 horas, pra dizer que: o vereador de Morro (Edvane) ia votar a favor, prometeram 20 obras do Morro pra ele votar a favor. Nossa aí estavam esperando eu mandar as frases, para escrever nos cartazes, para saber o quê que ia tá escrito nos cartazes pra gente levar pra câmara. Quando eu soube disso, 20 pras 16 da tarde, e a reunião era 19 horas da noite. Então eu tinha o caminho de Catas Altas até o Morro para pensar. Vim pensando o quê que ia fazer, o que que ia fazer. Pensei: vamos matar ele através desses cartazes. Vamos escrever pra ele, “pelo amor de Deus não vote”. “Edvane, o povo do Morro confia em você, não vote”. “Edvane, o Prefeito não votou em você…” Tudo com o nome dele, Edvane, Edvane, Edvane! Porque era ele que tinha vendido o voto por 20 obras. Cheguei em casa com essas ideias falei com as meninas: Vamos escrever pra Edvane diretamente. Vamos mandar os cartazes todos nele. A gente já tinha galera que ia para Câmara. Vamos escrever, também, os cartazes pra Ronaldo, outro vereador. “Ronaldo, a gente não esperava isso de você. A gente esperava que seu voto….” Aí as meninas falaram assim, “calma, Sandra, não vamos bater nele não. Vamos pegar ele pela emoção também, igual o Edvane. “Ronaldo, nós confiamos em você, nós precisamos do seu voto”. E aí a gente conseguiu com esses cartazes. A gente chega chegando… Aí chega, se não for para causar, a gente nem vai. Aí chegamos com os cartazes foi tudo para frente, para plenária. Colamos cartazes na plenária, mostramos o cartaz na frente do vereador. Cartaz na frente do outro vereador, povo pirou na Câmara, nós derrubamos todos os projetos que teve nesse dia. Todos. Então, assim, essa arte aí, tem.