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#MulheresTerritóriosdeLuta: Volta Redonda e os impactos da CSN

Em mais uma entrevista da sequência com mulheres lutadoras da América Latina na campanha #MulheresTerritóriosdeLuta, trazemos hoje a conversa com Raquel Giffoni, professora de sociologia e pesquisadora do PoEMAS, grupo de pesquisa sobre mineração. Nascida em Volta Redonda, Raquel conta um pouco da história com o território e dos impactos sentidos pela presença da CSN na região. A entrevista foi realizada por Marina Praça e Yasmin Bitencourt, do Instituto Pacs, e editada por Karoline Kina.

Raquel Giffoni | Foto: Acervo Pessoal

PACS: Qual é a história de ocupação e a relação do uso da terra e do espaço na cidade de Volta Redonda?

Raquel: Na verdade, Volta Redonda surge com a CSN, o nosso mito de origem está muito ligado à siderúrgica. A gente se torna independente, independente não, emancipado por conta da CSN, então a cidade é construída para ser uma company town, que é uma cidade empresa. A CSN chega e muitos trabalhadores vêm de Minas Gerais com a sua família. Nos anos 40, a cidade é então planejada, feita como um plano mesmo, com as moradias dos engenheiros, trabalhadores, os campos, clubes, o hospital, o hotel, para receber Getúlio Vargas que vinha para cá. Então, por exemplo, minha mãe morou no Acampamento Central, que era o lugar onde os trabalhadores moravam no início, quando não tinha casa para eles. Esse acampamento tinha casas de madeira, de dois quartos, que as famílias dos trabalhadores moravam, ali perto do Instituto Federal. É interessante, porque a gente sempre tem a ideia de que Volta Redonda é uma cidade planejada, ponto. Mas, ela foi planejada para algumas pessoas, porque mesmo na construção da CSN, muitos trabalhadores tinham que construir o próprio barraco, já que a moradia não era para todos eles, não dava conta, não era para dar conta, talvez. Então, eles foram ocupando os morros, as áreas mais distantes.

E como a CSN vai se expandindo, em 1960/70/80, tem as expansões da empresa, mais trabalhadores vêm para trabalhar nisso e vão ocupando áreas da cidade que não tinham nenhuma infraestrutura urbana, não tinham luz, asfalto, nada… Tiveram que desbravar essas áreas, que ficam do outro lado do rio. Bom, isso a CSN empresa pública, então você tinha um suporte do ponto de vista dos equipamentos urbanos, gratuitos, porque a empresa era responsável por cuidar da cidade, ela precisava fazer isso. Mas, ela vai se desobrigando ao longo do tempo, e o divórcio acaba com a privatização, em 1993, no governo Itamar Franco.

Com a privatização, o consórcio que comprou a CSN, comprou Volta Redonda junto, cerca de 25% da área urbana da cidade. Comprou não, levou, “ligando agora você leva a cidade”. Comprou a usina Presidente Vargas, porque a gente fala CSN, mas é Usina Presidente Vargas, porque a CSN está em Congonhas (MG), com a mineração, e em outros lugares. Mas aqui, em Volta Redonda, levaram a cidade. A escola técnica, o hospital, os terrenos. Volta Redonda tem centenas de hectares completamente vazios. É uma calamidade, porque não tem mais para onde crescer, isso é quase um senso comum aqui, e você tem áreas de milhares de metros quadrados que estão vazias, foram fazendas desapropriadas na década de 1940, mas que nunca foram usadas, e deveriam voltar para o poder público, mas não voltaram.

PACS: Antes da empresa, o território era uma área rural?
Raquel:
Sim, eram fazendas. Tem área da Fazenda Santa Cecília, que é onde tem a floresta. São áreas extensas, que a gente pensa que poderiam ser um espaço de lazer, poderiam ser um parque… O escritório central, que é um prédio gigante, no centro da cidade, onde ficava toda a parte administrativa da CSN, virou um local subutilizado, que poderia ser uma universidade, uma escola. Esses terrenos vazios poderiam ser casas populares. A gente fez uma pesquisa em 2015, perguntando para as pessoas o que elas acham que esses locais deveriam ser, e elas se indignam com os espaços vazios, com a placa “propriedade da CSN”, mas também tem um pensamento de que “isso aí não vai mudar não”. O Ministério Público entrou pedindo a devolução dessas terras, houve uma forte mobilização na cidade e tal, mas os desembargadores indeferiram.

PACS: Com se deu o processo de licenciamento ambiental da CSN? A comunidade participou, foi consultada?

Raquel: Embora ela tenha sido criada antes de toda a legislação ambiental, ela teve que se adequar depois. Fez um termo de ajuste de conduta nos anos 2000 e segue assinando TACs. É tão complexa essa questão do licenciamento da CSN, porque ela funciona através de TACs que não são cumpridos. Ela tem que ter a licença, tem que ter uma renovação da licença, está atrasada há não sei quantos anos, e nada acontece, assim como a TKCSA. Então, ela fez algumas adequações, cumpre uma parte dos termos e não cumpre outras. É escandalosa a questão do licenciamento aqui, realmente. Não é um processo transparente as assinaturas dos TACs, são acordos de cavalheiros.

PACS: É Inea ou Ibama?

Raquel:Inea. Ano passado assinaram um. Eu, que trabalho com essas questões, não consigo achar na internet, só existe notícia que assinou, mas nem assim, eu não encontro termos do TAC, e isso se trata do licenciamento da empresa. Ela precisa licenciar e deveria ser público, deveria ter participação social. Parece que no TAC de 2000, ela fez uma série de adequações ambientais, diminuiu um pouco a quantidade de pó emitida nessa época, provavelmente pelo uso de filtros. Só que esses filtros não recebem manutenção, tem uma série de coisas que é necessário manter e fiscalizar. Assim, teve em 2000 uma comissão de acompanhamento TAC de pessoas da sociedade civil. Foi uma experiência interessante, até quem participou, me lembro de conversar com algumas pessoas que estiveram presentes, mas assim, foi uma experiência isolada.

PACS: Quais são as transformações, os impactos e os conflitos que esse megaprojeto causou?

Raquel: Desde a construção até a década de 1990, os conflitos trabalhistas, capital-trabalho eram os mais evidentes. Então, você tinha um sindicato forte e engajado. Tanto que, em 1964, quando aconteceu o Golpe, aqui imediatamente prenderam trabalhadores. A CSN tinha uma assessoria de segurança ligada à presidência dela, que inspecionava mesmo a vida dos trabalhadores para denúncia e acompanhava permanentemente os movimentos contra a Ditadura Militar.Sempre teve resistência dos trabalhadores, várias greves na década de 60 e 70, com o início do novo sindicalismo, no final de 70 e início dos anos 80, um sindicato muito forte.

Com o processo de privatização, neoliberalização, desemprego, de demitir milhares de pessoas, a força dos trabalhadores diminuiu. Mas aí você teve, o que o José Sergio, professor do Museu Nacional, fala sobre ambientalização dos conflitos. Algumas pessoas vão até discordar, dizem que Volta Redonda não ambientalizou os conflitos. A questão ambiental ainda não é uma questão tão potente quanto deveria ser, ou quanto as pessoas podem imaginar que seja. Bom, aparece a questão ambiental no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, estava todo mundo discutindo sobre Eco 92, etc. E, assim, a CSN vai começar a ser constrangida a adequar uma série de práticas, aí a questão dos impactos visíveis da poluição atmosférica se torna muito grande, Volta Redonda vira uma nova Cubatão – SP. Então, existem várias pesquisas que mostram que as mulheres grávidas em Volta Redonda têm uma propensão a ter bebês de baixo peso e prematuros. Isso foi identificado em uma pesquisa da USP[1]. Uma série de questões ambientais que vão surgindo, se tornando uma questão de saúde pública…

PACS: Quais são as populações mais atingidas pela CSN? Existem impactos diferenciados para trabalhadores, população negra, mulheres, crianças?

Raquel: As mulheres, e principalmente as mulheres idosas são as que mais sofrem os impactos da poluição atmosférica. A questão das grávidas, como falei, as crianças e idosos por conta da fragilidade do sistema respiratório… Então, no campo da poluição atmosférica, esse é o público que mais sofre. Para os trabalhadores, existe o risco de acidentes lá dentro, a questão da leucopenia, que é associada ao benzeno emitido pela usina, quem trabalha nas áreas da usina que emite esse poluente sofre mais. Teve até uma associação dos leucopênicos aqui em Volta Redonda, dos trabalhadores que adoeceram e lutavam pelos seus direitos. Mas, com o tempo e as violações de direitos que eles sofriam, era muito ruim para eles dizerem que eram doentes, porque eles não eram mais contratados. Era um estigma. Portanto, tem essa questão também do impacto dos trabalhadores.

Embora toda a cidade seja atingida pela poluição atmosférica, os bairros mais pobres sofrem com uma carga maior da poluição e têm menor possibilidade de cuidar das doenças respiratórias.  A pilha de escória da CSN, com mais de 30 metros de altura, fica localizada ao lado do Rio Paraíba, e impacta a saúde das pessoas que moram nos bairros próximos. Bairros mais pobres, da classe trabalhadora. Além do caso histórico da contaminação do Volta Grande IV, bairro operário que foi construído em cima de depósitos irregulares de resíduos tóxicos da CSN. A cidade é repleta desses depósitos de lixo perigoso, que contaminam o solo e a água.

PACS: Qual é o papel das mulheres nesse contexto da empresa, da resistência? Existem impactos diferenciados para elas?

Raquel: Eu acho, além desse impacto da poluição atmosférica nos corpos das mulheres, você tem a questão do trabalho. Os homens trabalham, as mulheres trabalham, tem a questão do filho, a questão do trabalho reprodutivo fica muito mais pesada, porque elas também têm que trabalhar, então eu vejo que isso é um peso aqui. As nossas referências em Volta Redonda ainda são muito masculinas. No entanto, a participação das mulheres na greve de 1988, por exemplo, foi essencial. Os trabalhadores ocupam a usina, e as mulheres têm uma participação muito importante, fazendo a sustentação da greve do lado de fora. O Exército vem para Volta Redonda – que ainda era uma área de segurança nacional mesmo com o fim da Ditadura – vem com tanques, entra na usina e provoca a morte de três operários. E há uma comoção nacional, tem muitas notícias da época. O Niemeyer fez um monumento aqui em Volta Redonda, ali na Vila, que é o Monumento dos Três Operários Mortos, bem bonito e tal. No dia seguinte da inauguração, os militares explodiram o monumento. Enfim, não se sabe até hoje quem foi o culpado, mas isso aconteceu. E o Niemeyer falou para deixar o monumento destruído para mostrar

PACS: Quais são os principais atores envolvidos nesse conflito?

Raquel: Tem os agentes capitalistas; a usina; o capital imobiliário; os empresários, porque é isso, é uma cidade pequena, você tem um capital imobiliário muito pesado. E de organizações de resistência, tem a Igreja Católica; as Comunidades Eclesiais de Base foram muito fortes em um determinado momento histórico, se enfraqueceram, foram migrando para outros grupos. Tem algumas entidades ambientalistas; a Comissão Ambiental Sul, que até eu faço parte, que ela congrega vários movimentos sociais; tem membros de partidos políticos do PSOL; membros do PT… o ICMBio também está junto na comissão ambiental; o pessoal que trabalha com a questão das catadoras e catadores de material reciclado, mulheres da economia solidária; o  MEP (Movimento Ética na Política), que é bem importante,  levam adiante várias questões fundamentais para a cidade. Tem também a OAB de Volta Redonda, que nos últimos três anos se engajou bem na questão do meio ambiente, a questão das terras, um ator relevante no cenário. O MNLM, e tem um grupo próximo ao MTST, liderado por mulheres, que fizeram uma ocupação aqui em Volta Redonda e conseguiram um terreno em que estão morando, a Ocupação Dom Valdir. E o Movimento dos Atingidos pelo Pó, ele vem da própria comissão ambiental, foi um movimento que a gente fez inspirado no MAB para levar para frente a questão da poluição atmosférica. Tem também os partidos políticos; o Sepe, que é o sindicato dos professores, que aqui é bem forte e atuante.

Mas, esses processos de resistências aqui são interessantes, pois eles nunca são um enfrentamento direto contra a CSN, porque é aquilo, teu pai trabalha na CSN, teu filho vai trabalhar na CSN e assim por diante… Todo movimento a gente tem que falar que “a gente não tá AQUI contra a CSN, a gente quer que a CSN…”. É sempre assim, num movimento de que a CSN precisa se transformar, mas a gente não é contra ela, porque ser contra ela é ser contra a cidade, sabe…

PACS: Você pode falar um pouco sobre os acidentes que já aconteceram na CSN?

Raquel: Sim, isso é uma coisa importante de ser dita. Sempre há muitos acidentes de trabalho que envolvem mortes, queimaduras graves. Recentemente, uma moça foi intoxicada, uma trabalhadora. Enfim, os acidentes infelizmente são uma rotina. E o acidente na empresa nunca impacta somente o trabalhador acidentado, mas impacta mentalmente todos os colegas de trabalho que presenciaram o acidente.

PACS: E sobre a construção dos imaginários acerca da “Cidade do Aço”?

Raquel: Volta Redonda é uma cidade que, diferente de Santa Cruz, já nasceu assim, que se orgulha do aço. Cidade do Aço, os bairros Siderlândia, o shopping se chama Sidershopping, o hotel se chama Hotel Sider. É uma coisa um pouco ufanista. Embora tenha se enfraquecido, porque a própria dimensão da empresa na cidade enfraqueceu, por conta da demissão em massa, mas o imaginário continua. E, mesmo assim, quem trabalhou, quem hoje tem seus 60 anos e aposentou na empresa, ainda tem uma idealização sobre trabalhar na CSN. Já os meus alunos, às vezes, querem fazer estágio na CSN, eles querem porque eles vão ganhar qualquer coisa, mas eles sabem que não é um sonho, é muito diferente de um sonho aquilo. Não tem aquela idealização dessa outra geração, mas ainda tem um resquício.  


[1] Acesse: http://www.usp.br/agen/?p=15947