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Racismo Ambiental vivido desde os corpos territórios atingidos por Megaprojetos

Com o objetivo de discutir o racismo ambiental, a forma como se expressa e os impactos nos corpos-território das mulheres, o sexto Ciclo de Debates #MulheresTerritóriosdeLuta trouxe o tema “Racismo Ambiental em contextos de megaprojetos”. Essa é mais uma iniciativa da campanha que traz o caminho das lutas marcadas e vividas pelas mulheres em realidades marcadas pela presença dos megaprojetos de desenvolvimento e que exigem (re)existências, realizada pelo Instituto Pacs.

Foto: Instituto Pacs

O encontro virtual contou com a participação de Aline Marins, do Coletivo Martha Trindade; Isabel Padilla, da Pastoral Social do Vicariato Eclesiástico de Esmeraldas (Equador); Simone Lourenço, do Fórum Suape de Pernambuco; e Cris Faustino, que faz parte do Instituto Terramar, localizado no Ceará.

Um dos principais pontos abordados durante o Ciclo foi a forma como os megaprojetos reproduzem e reforçam o racismo ambiental nos territórios. Para Isabel Padilla, que trouxe para o debate a perspectiva de vivência no Equador, falar sobre o tema requer uma reflexão de volta ao passado e um entendimento do que, de fato, é o racismo: “Racismo é a superioridade que uns exercem sobre outros, muitas vezes de forma ostensiva ou dissimulada. Quando falamos de racismo ambiental, temos que remontar ao conceito cunhado no âmbito das lutas por justiça ambiental durante os anos 80 em relação à exposição desigual aos riscos ambientais e seus impactos, que afetaram negativamente as comunidades negras nos EUA”, explicou.

Apesar do artigo 11 da Constituição equatoriana reconhecer o princípio de igualdade e não discriminação, estabelecendo que “todas as pessoas são iguais e gozam dos mesmos direitos, deveres e oportunidades”, essa ainda não é a realidade da vida das populações afetadas pelos megaprojetos no país: “Percebe-se que os direitos dos afro-equatorianos estão sendo violados, quando necessidades básicas não são atendidas: pela falta de educação de qualidade, trabalho ou emprego, segurança social, saúde, água e alimentação, moradia digna e ambiente ecologicamente saudável.”

No Brasil, esse processo histórico de desenvolvimento econômico violador de direitos e que reforça as desigualdades não foi diferente. No debate, Cris Faustino trouxe a perspectiva do processo de formação do Brasil para falar sobre o assunto: “O nosso país começa com uma expropriação territorial e todos esses ciclos econômicos, o período colonial e pós colonial, são baseados na exploração de matérias primas e também ambiental. Então, esse tempo de colonização e também a história de quem domina e quem tem sido prejudicado nesse processo histórico precisam ser levados em consideração”, afirmou. De acordo com ela, um dos principais fatores que dificultam esse debate atualmente é a incompreensão aprofundada sobre o racismo estrutural e a forma como ele é fundante da nossa história.

Para Simone Lourenço, há ainda a questão da forma como a sociedade está acostumada a lidar com o tema: “Essa questão do racismo, a gente tá muito acostumado a associar só com a questão da pele, da religião, da cultura. No entanto, a gente sabe que o racismo ele é estruturador de todas as formas de desigualdade, o racismo ambiental está ligado a essas questões territoriais, onde as populações mais vulneráveis estão. Essa é uma forma de desigualdade também que é causadora de muitas injustiças, sobretudo nas populações pobres, negras, periféricas”, explicou .

Nos territórios impactados pelos megaprojetos, as desigualdades são ainda mais intensificadas. Aline Marins, que vive em Santa Cruz, região localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro e que é impactada há 14 anos pela Companhia Siderurgica do Atlântico (CSA), a empresa Ternium Brasil (antiga TKCSA), acompanha de perto a trajetória de impactos socioambientais e de violações de direitos desde que a siderúrgica se instalou no local: “Já desde o início, a CSA já violava muitos direitos e começou a funcionar sem seu licenciamento”. A empresa permaneceu em atividade durante seis anos, de 2010 a 2016, sem licença de operação e sem respeitar por completo até mesmo o Termo de Ajuste de Conduta (TAC) estabelecido: “Eles deveriam ter feito uma série de ajustes para que os impactos aqui na comunidade fossem amenizados. Nem todas as coisas que foram listadas foram feitas e a gente vê hoje os impactos diariamente nas pessoas que vivem aqui”, contou.

Na região, banhada pela Baía de Sepetiba, a pesca e a agricultura eram as principais fontes de renda das populações locais antes da instalação da Ternium no território: “Eles construíram uma barragem no Canal do São Francisco que passou a impedir o tráfego dos pescadores até a Baía de Sepetiba. Por um período muito grande, a pesca foi impossibilitada na região, porque essa tentativa de passagem causava muitos acidentes”, contou Aline. A agricultura também diminuiu significativamente, principalmente por conta da poluição que passou a impedir o desenvolvimento da produção no local.

Nesse contexto de impactos às populações locais e a falta de cumprimento de leis e acordos, Cris Faustino pontuou como a instalação desses empreendimentos não considera a história dos territórios e das populações locais, visando somente explorar os recursos: “O que a gente pode dizer é que esses projetos demandam, inclusive, os danos ambientais e sociais, porque eles não têm possibilidade de serem implementados sem gerar danos”, explicou. Desse modo, os acordos e as garantias jurídicas precisam existir para evitar que as populações locais sejam impactadas negativamente, porém, como pontuou Cris, não é o que acontece em grande parte dos casos: “Esses acordos são feitos, na grande maioria, sem a participação das populações negras, indígenas ou originárias desses territórios  e envolve toda uma institucionalidade branca para a sua construção”.

Nas conjunturas em que o racismo ambiental se mostra presente, a reflexão sobre quem são os corpos atingidos se mostra necessária, como afirmou Simone durante o debate: “O retrato que a gente vê é que são populações desassistidas pelo Estado, são populações que vivem em situação de alta vulnerabilidade e isso em função dos modelos de sociedade que foram se constituindo. E o modelo social que a gente vive hoje é estruturador da desigualdade e das injustiças”. Para ela, que atua na região do SUAPE, Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros em Pernambuco, os empreendimentos desconsideram toda uma história e vida pertencentes aos povos originários: “Para um empreendimento se instalar, ele precisa de terra. E aqui nessa terra, onde ele se instalou, já tinham comunidades e famílias que foram dizimadas e perderam o direito de estarem no território”.

Outro ponto também abordado durante o 6º Ciclo e que é o principal foco de toda a Campanha #MulheresTerritóriosdeLuta é a forma como as mulheres são diferenciadamente afetadas pelos megaprojetos. Aline pontuou durante a sua fala os impactos vividos pelas mulheres na região de Santa Cruz: “As mulheres foram diretamente impactadas com a instalação da siderúrgica, principalmente pela chegada de homens vindos de fora. Muitos chineses, inclusive, que eram presos no exterior, vieram para cá cumprir pena no trabalho de construção da Ternium. E, mais uma vez, os corpos das mulheres foram impactados. A gente perdeu a nossa identidade local.”

Isabel também abordou os impactos vividos pelas mulheres durante o debate: “Neste contexto, as mulheres são as mais afetadas e, ao maltratar uma mulher, uma família, sociedade e país inteiros são feridos, pois é isso que as mulheres representam. Elas são parte fundamental da criação, manutenção e preservação da vida”. Também são as mulheres que assumem os lugares de liderança na defesa dos direitos de seus povos: “​O papel que elas assumiram lhes permitiu denunciar corajosamente a destruição da natureza e, ao mesmo tempo, defender outras mulheres vítimas da exploração. Elas nos ensinam a resistir e a entender o território como um espaço integral que garante a reprodução da vida tanto em nível material quanto simbólico”. Assim como Isabel, Simone também enxerga nas mulheres a força pela defesa dos territórios: “As mulheres têm uma conexão forte com as terras, as águas, a ancestralidade. E é por isso que elas resistem pelas suas histórias e seus territórios”.

O próximo Ciclo de Debates #MulheresTerritóriosdeLuta acontecerá no dia 19/08, quarta-feira, às 17h no canal no Youtube do Instituto Pacs.