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Atuação das mulheres na defesa dos direitos humanos e ambientais é tema de encontro virtual do Instituto Pacs
Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs)
No contexto de debate dos impactos causados pelos Megaprojetos nos territórios e na vida das mulheres, o protagonismo feminino na defesa dos direitos humanos e ambientais é, muitas vezes, invisibilizado. Diante dessa conjuntura o Instituto Pacs, em sua quarta edição do Ciclo de Debates #MulheresTerritóriosdeLuta, trouxe o tema “Mulheres em defesa dos direitos humanos e ambientais”. Essa foi mais uma iniciativa da campanha que traz o caminho das lutas marcadas e vividas em realidades que exigem (re)existências.
No encontro, Valeria Urbina, especialista no Programa Amazônia da Instituição Derecho, Ambiente y Recursos Naturales (DAR); Lígia Rocha, da Defensoria Pública da União (DPU); e Flávia Silva, da Associação de Moradores de Piquiá de Baixo, trouxeram suas perspectivas sobre como as mulheres vêm atuando nos territórios diante às violações provocadas pelos Megaprojetos, além das possíveis ações para a responsabilização dos agentes violadores de direitos.
Um dos principais pontos abordados no Ciclo foi como, mesmo ocupando lugar de protagonismo no que diz respeito às reinvindicações, ao trabalho do cuidado e ao engajamento em ações dentro dos territórios, as mulheres têm seus esforços negados e diminuídos diante da estrutura social patriarcal. Lígia Rocha, que atualmente está na Secretaria de Ações Estratégicas da DPU e atua no âmbito do acompanhamento das ações judiciais e extrajudiciais sobre o rompimento das barragens do Fundão, em Mariana, no ano de 2015, e a de Córrego do Feijão, em Brumadinho, no ano de 219, contou como as mulheres são invisibilizadas até mesmo nos processos reparatórios judiciais: “Toda a questão do trabalho das mulheres não foi levada em consideração quando se construíram os primeiros diálogos em relação ao processo reparatório da barragem de Mariana”. Na matriz de danos, elaborada para definir o que seria indenizado neste caso, não se considerou todo o trabalho feito pelas mulheres dentro de casa e nem as atividades informais de geração de renda exercidas por elas.
Os casos de Mariana e Brumadinho são exemplos concretos de como os Megaprojetos podem, de fato, violar os direitos humanos e modificar de maneira irreparável a vida de diversas populações, principalmente das mulheres. Nesse contexto, Valeria Urbina, que atua em uma organização peruana cuja missão é fortalecer a governança ambiental na Bacia Amazônica, trouxe em sua fala alguns dados do estudo “Gênero e indústrias extrativistas na América Latina”, realizado pela DAR, em conjunto com a Fundación para el Debido Proceso (DPLF), parceira do Instituto Pacs no curso online Direitos Humanos e Empresas: violações socioambientais e mecanismos de denúncia[p1] . O estudo focou em três grandes âmbitos da vida das mulheres: as autonomias física, econômica e política e, dentre outras informações, apontou um aumento da violência de gênero e danos à saúde feminina em territórios onde ocorrem atividades extrativistas. “Essa violência pode ocorrer a nível intrafamiliar ou por agentes externos. No caso familiar, decorre da divergência de opinião sobre a chegada desses megaprojetos, porque para os homens, isso pode simbolizar uma oportunidade laboral”, explicou Valeria.
Essa impressão inicial de oportunidade de geração de emprego na chegada dos megaprojetos nos territórios também foi abordada na fala de Flávia Silva. Na comunidade de Piquiá de Baixo, em Açailândia (MA), essa foi a principal promessa quando, no final dos anos 80, as Siderúrgicas Viena, Fergumar, Pindaré, Simasa e Gusa Nordeste se instalaram no local para iniciar as operações de produção de ferro-gusa. “Quando os megaprojetos chegaram, eles falaram que dariam emprego para as pessoas saírem de um terreno que já era ocupado. A gente é impactado há mais de 30 anos e a nossa história de luta começou com a Associação de Moradores, o primeiro grupo a se organizar para querer sair do bairro, mesmo sendo os primeiros moradores a estarem ali”, contou Flávia. Hoje, Piquiá de Baixo também é impactada pela Estrada de Ferro e pelo entreposto de minério da Vale.
Para as mulheres, quando essas oportunidades vindas dos megaprojetos surgem, elas vêm replicadas dos papéis de gênero impostos pelo patriarcado. Valeria abordou a questão em sua fala: “As indústrias extrativistas tendem a contratar homens. Isso impacta a autonomia financeira delas e o desenvolvimento de atividades econômicas. Quando os processos decisórios e avaliações ambientais dos projetos extrativistas ocorrem, elas também são marginalizadas”.
Lígia também pontuou o assunto no contexto dos processos reparatórios dos rompimentos das barragens: “Os homens que trabalhavam fora de casa, foram cadastrados como chefes de família e as mulheres ficaram com os seus cadastros vinculados a eles. Portanto, quem recebe os auxílios emergenciais são os homens. Isso ocasiona uma dependência econômica das mulheres em relação aos homens até no processo reparatório”. Ela explicou que toda a visão patriarcal em cima do que é possível ou não comprovar como atividade de trabalho nesses processos, que utilizam materiais documentais como prova, prejudica diretamente as mulheres. Apesar da superação das dificuldades na perspectiva de gênero do processo em Brumadinho, em que foi possível colocar as mulheres que são chefes de famílias como pessoas que necessitam de benefício, ainda há muito para ser feito no que diz respeito à desigualdade de gênero.
Apesar disso, é dentro desses cenários de violações que as mulheres vêm exercendo importante papel na defesa de direitos humanos, mesmo que o ingresso de projetos extrativistas gere um circuito que exponha, sobretudo, mulheres e meninas a situações de assédio e violência sexual. De acordo com Valeria, quando a mulher ocupa espaço de liderança na defesa dos direitos de sua comunidade, o risco de sofrer violência é ainda maior: “Isso se intensifica quando a mulher é defensora. No Peru, de 2003 a 2017, 102 mulheres foram criminalizadas e 10% das mortes em conflito corresponde a elas. Na pandemia, isso se intensifica, já que defensores e defensoras da terra se tornam alvos fáceis”, pontuou.
Estar presente nesses espaços de liderança na defesa dos territórios é uma forma de representação de todos aqueles que sofrem os impactos dos megaprojetos diariamente. Para Flávia, estar em um espaço de destaque na defesa da comunidade de Piquiá de Baixo vai muito além das motivações pessoais: “Eu não estou nesses espaços por mim, eu estou pelas crianças e pelos idosos, que não podem estar aonde eu estou”. Em 2016, ela participou do Grupo Vigilante em Saúde, juntamente com jovens do Coletivo Martha Trindade, de Santa Cruz, e com o Instituto Pacs e a Fiocruz. Na ocasião, foi realizado um monitoramento de poluição do ar para contestar as informações que as empresas que atuam com o extrativismo e siderurgia na região apresentavam em seus relatórios. O projeto recebeu em 2017 o Prêmio FAPEMA em São Luis. No ano de 2019, Flávia participou em sessão da ONU para falar sobre Piquiá de Baixo e a colaboração em uma jornada de denúncias [p2] dos crimes cometidos por megaprojetos, em parceria com lideranças de Brumadinho, que passou por Genebra e Roma. “Tudo isso a gente usa de apoio para conseguir aliados e as coisas que a gente está buscando para que nosso reassentamento seja concretizado. Isso serve para gente estar contando nossas histórias de incidência. De mãos juntas a gente consegue muita coisa, mesmo sendo pouca”, concluiu.
Assista o vídeo na íntegra: