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Ser um refugiado palestino é uma coisa. Agora ser uma mulher palestina refugiada é outra história.

Por Jyussara Abadallah e Nada Ali, refugiadas palestinas no Brasil

Nós duas somos refugiadas palestinas — a maioria dos palestinos são refugiados, expulsos de nossas casas por Israel. Nossos avós se estabeleceram no mesmo campo de refugiados, chamado Al Jalazoon. Nós viemos originalmente de uma região que sofreu limpeza étnica e que nenhuma de nós jamais teve a chance de visitar. Contudo, nós nos conhecemos fora do campo de refugiados, enquanto atuávamos na luta pela construção de uma sociedade palestina inclusiva, livre de todos os tipos de opressão e racismo. Nós não temos ideia de onde exatamente nos encontramos, mas temos certeza que foi durante um evento em solidariedade aos prisioneiros que passavam por uma greve de fome ou em uma visita solidária às famílias mártires.

Foto: Instituto Pacs

Nós sabemos, com base nas histórias das nossas avós, que nós, mulheres, somos o principal fator de preservação da identidade e das vidas de refugiados palestinos depois do trauma de Al-Nakba* em 1948, e que agora esse segue sendo o nosso papel ao criar as próximas gerações para que entendam e lutem por nossos direitos. Nós sabemos também que a mulher palestina sempre fez parte da luta nacional por liberdade e justiça. E isso é perturbador pra nós por também termos certeza que somos consideradas “ameaças demográficas”, pelo simples fato de sermos capazes de dar à luz à próxima geração de palestinos. Essa função e capacidade de reprodução do nosso povo, que as políticas do apartheid israelense reprimem e limpam etnicamente há décadas, tem conduzido vários líderes políticos e figuras acadêmicas israelenses a lançarem chamados para nos matar ou estuprar.

Jussara tinha 7 anos de idade quando sua família — uma mãe colombiana, um pai refugiado palestino e seus irmãos — fugiram da Colômbia para a Palestina. Eles fugiram das explosões e das medidas militares que ameaçavam a vida em Bogotá, para a casa de seu avô no campo de refugiados Al-Jalazoon. Na época, lá parecia muito mais seguro. Depois que a revolta popular, conhecida como Segunda Intifada, estourou em 2000, seus pais perderam seus empregos e a situação econômica se complicou. Seus passaportes expiraram por conta de bloqueios que Israel estabeleceu para impedir que pessoas se movessem de uma área para outra, eles não conseguiram acessar a embaixada e se tornaram residentes ilegais. Em 2012, sua mãe teve que ir para a Colômbia por conta de uma emergência. Desde então, Israel, que controlava as fronteiras e, de fato, toda a sua terra natal, proibiu a sua volta à Palestina. Em resumo, ela descreve a sua vida no campo como um estado constante de medo e tristeza. Lá você pode perder seus amigos e amados a qualquer momento, eles podem terminar na prisão, no túmulo ou numa cadeira de rodas. Viver em um campo de refugiados significa pensar a cada manhã: “hoje eu estou aqui, mas não tenho ideia de onde 69 irei terminar ou o que irá acontecer comigo”.

Nada foi criada em uma casa longe do campo, filha de um pai refugiado e de uma mãe que teve sua própria experiência com a opressão israelense. Ao crescer, ela ouviu centenas de histórias sobre luta e resistência, além de histórias horríveis sobre prisões, assassinatos e privações em campos de refugiados. Em toda sua vida, ela esteve sujeita a situações de assédio em pontos de verificação militares, a restrições para se mudar ou viajar, a revistas, além de invasões noturnas de forças israelenses como a que resultou na prisão de seu irmão mais novo. A história de seus pais e sua própria experiência com o colonialismo e o apartheid fizeram com que ela percebesse a importância de ser ativa na luta em prol de um futuro melhor.

Como parte do movimento feminista palestino, nós somos bem conscientes de que a luta da mulher palestina não é a única desse tipo e que mulheres de qualquer lugar do mundo enfrentam sofrimentos que só atingem a elas por serem mulheres e estão, assim, enfrentando uma carga dupla no dia a dia. Nós também acreditamos na importância de juntar esforços de toda a população, grupos, movimentos e organizações ao redor do planeta em prol de um mundo livre de todas as formas de opressão, apartheid e racismo.

Nós sabemos de fato que não estamos sozinhos e que o povo oprimido ao redor do mundo enfrenta as mesmas lutas que nós todos os dias. O que dói mais é saber que Israel testa seus modelos militares em nós para depois vende-los a outros regimes repressivos e assim, que serão usados contra nossos companheiros de luta.

Palestinos e refugiados dentro da Palestina ou em diáspora, irão continuar lutando até todos os seus direitos serem reconhecidos. Mulheres refugiadas, uma parte integral dessa luta, não descansarão até que as próximas gerações não tenham que viver sob a opressão que elas enfrentam constantemente.

El pueblo unido jamás será vencido.

*Catástrofe na Arábia, refere-se a quando as forças israelenses e paramilitares tornaram de 750000 a 1 milhão de indígenas palestinos em refugiados para estabelecer um estado de maioria judaica em 78% da Palestina histórica.

Este texto é parte do livro “A Fortaleza das Mulheres” (2020), uma parceria entre o Instituto Pacs e Gizele Martins, comunicadora comunitária da favela da Maré.