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O Estado mata antes de apertar o gatilho

Por Buba Aguiar, do Coletivo Fala Akari, da Favela de Acari, zona norte do Rio de Janeiro

A militarização dos corpos marginalizados vem ganhando proporção cada vez maior. Podemos enxergar isso pelo modus operandi da atuação policial nas favelas e periferias. O estado brasileiro é o principal responsável pela construção do pensamento de que há uma classe de “corpos matáveis”.

Foto: Instituto Pacs

Vivemos sob tutela de um estado policialesco que atua pelos interesses das classes dominantes em detrimento dos direitos do povo, e a militarização dos territórios favelados é um mecanismo utilizado para manutenção e perpetuação dos privilégios de quem já os têm e para o controle dos indivíduos vistos à margem da pirâmide social.

A tortura, por exemplo, é um resquício não somente da época de ditadura militar, mas da época da escravatura, quando diversos procedimentos eram usados para punir indivíduos que não se encaixavam nos padrões sociais da época, ou seja, os negros escravizados, indivíduos que eram objetificados e animalizados. O estado, ainda hoje, usa de tais mecanismos para punir, de diversas formas, aqueles que são construídos como “o inimigo”: a população negra e pobre.

Porém, a vítima da violência do estado não é somente o indivíduo diretamente atravessado por ela. É também, por exemplo, a mãe que 20 chora por seu filho executado em operação policial.

Todo o aparato usado pelo estado nas operações policiais, que violam os direitos do povo favelado, é digno de situação de guerra, além do discurso para o uso de tais ferramentas, o da “guerra às drogas”, ser falacioso e com viés explicitamente racista, ainda tem o fato de que os dois lados mais vistos nessa chamada guerra, agentes de segurança pública e varejistas de drogas, não estão em pé de igualdade.

O início do uso de grandes veículos blindados, conhecidos como caveirões, se dá na África do Sul, no regime do apartheid, para intervenções nos guetos, em 1948. Podemos dizer que a finalidade do uso, lá e aqui, é a mesma: política de segregação e extermínio. Oficialmente, o caveirão deveria ser usado somente para apoio em operações e resgate de policiais feridos durante as mesmas, porém o uso do carro blindado é de combate.

Em 2014, o estado do Rio de Janeiro ganhou oito novos caveirões para as Polícias Civil e Militar. Os carros, fabricados por uma empresa sul-africana, foram colocados para uso na mesma semana em que chegaram ao Rio.

Geralmente de cor preta, carrega na lateral a imagem de uma caveira brava que tem uma adaga cravada e duas armas cruzadas, e já chegou a ter alto falantes adaptados que anunciavam de forma macabra a chegada do blindado nas favelas, o caveirão é o símbolo mais adequado para falar de terrorismo de Estado.

A violência urbana é parte, de forma proposital, da agenda política que nos cerca. É necessária a análise do aumento da violência urbana, principalmente na perpetuação do Estado como monopolizador da violência na sociedade, e instaurando a base para uma so- 21 ciabilidade violenta o Estado tem nas mãos a desculpa perfeita para o controle e a vigilância da massa, com foco nas favelas e periferias do Rio de Janeiro.

É importante também expor a semelhança entre as opressões orquestradas contra o povo em outros países, como a Palestina. O Brasil é, por exemplo, um dos principais compradores de tecnologia e treinamento militar israelense, ou seja, o Brasil é um dos maiores clientes da indústria de armas de Israel. Os instrumentos usados no genocídio do povo palestino são os mesmos usados pelo Estado brasileiro contra o povo pobre e favelado. Isso poderia ser apenas uma comparação, se não fosse o fato de que a Polícia Militar do Rio de Janeiro e o Exército brasileiro tiveram renovação técnica e bélica importada das Forças Armadas Israelenses.

O Estado age através da política do medo em relação aos moradores de favelas. Essa política é posta em prática de várias formas, não apenas com o uso de seu braço repressor, a Polícia Militar, mas também com a falta de políticas públicas nesses lugares. Além de toda precariedade que o estado nos impõe, nos matando, ora de pouco em pouco, ora de forma expressa. Quando uma pessoa é morta numa favela, a situação não afeta apenas à família, mas a toda a comunidade.

As marcas da violência do estado podem ser notadas nas pessoas que sofrem essa violência, não apenas fisicamente, mas também psicologicamente. Quem tem proximidade com as pessoas mortas pela polícia podem entrar num processo de luto interminável. Assim como quem é agredido pelos policiais pode entrar num processo de revolta sem fim. Mas todo aquele que vive um cotidiano de violações de direitos por parte do Estado, mais cedo ou mais tarde, pode vir a apresentar danos psicológicos. E diante das sucessivas violências vivenciadas por nós, povo das favelas, não seria diferente com a gente.

Entre o final de 2016 e o começo de 2017 dei uma relaxada no meu tratamento terapêutico. Porém desde o início do mês de janeiro desse ano a Favela de Acari, onde moro, assim como várias outras favelas, sofreu com inúmeras operações policiais nas quais os agentes sempre praticam absurdas violações e abusos.

Com isso, percebi um aumento, tanto na frequência quanto na in- 24 tensidade, das minhas crises de ansiedade. Meu organismo altera os padrões fisiológicos e psicológicos no modo de reagir a esse cotidiano de mortes, de sangue escorrendo, e de mães, filhas, primas, irmãs e esposas chorando.

Tais reações geram preocupantes tensões corporais. Alguns profissionais da saúde dizem que a ansiedade pode colaborar, por nos colocar num estado de atenção e alerta nos protegendo de possíveis perigos. Mas como lidar com isso quando vivemos sob constante perigo, ameaça e violência vindas de um agente visto como intocável, como é o estado, especialmente seu braço armado?

Nossa mente conhece nossos medos e quando eles parecem ser distantes fantasmas, ela trata de fazê-los presentes. Certa vez estava no meu trabalho formal e ouvi o barulho dos fogos que anunciam a chegada da polícia na favela. Aquilo desencadeou uma forte crise de ansiedade. Somente depois de algumas horas, quando já estava mais calma, descobri que não haviam soltado fogos. Minha mente foi quem soltou meus fantasmas, num momento totalmente inesperado. E assim se tornam frequentes os calafrios, a sensação de aperto no peito, as palpitações, os tremores, as náuseas, a falta de ar, vômitos, tonturas.

Em graus elevados, a ansiedade acarreta uma série de problemas no que se refere à saúde física de quem sofre do transtorno. As dificuldades para dormir e os pesadelos estão entre esses problemas, e também estão entre os que detectei em mim. E piorou de uns tempos pra cá, visto que tem havido várias incursões policiais com trocas de tiros durante a noite, e também a prática da tróia pelos policiais, que é quando eles ficam escondidos em alguma casa na favela por horas até atacarem de surpresa sem uma operação oficial.

Num outro momento da minha vida, estive em acompanhamento nutricional para conseguir ganhar alguns poucos quilos e chegar ao peso ideal para meu IMC (Índice de Massa Corporal), porém uma outra consequência da ansiedade são os distúrbios alimentares. Com isso, os quilos que deveria ganhar, eu perdi.As dores de cabeça e nas costas se tornaram companhias constantes, juntamente com a falta de ânimo para sair e estudar. O cansaço também.

E a vida se torna quase uma maratona diária que quando eu termino me sinto merecedora de uma medalha: tomar café correndo para sair enquanto ainda não entraram, perder a fome no almoço porque ainda estão na favela e humilhando moradores. Não ir para faculdade, ou porque está ocorrendo operação, ou porque o horário de saída da faculdade é tarde e corro o risco de ser baleada numa emboscada deles. Quando é possível ir para faculdade, minimamente tranquila, ok. Mas como estudar ao som dos tiros, que muitas vezes são disparados a esmo pelos policiais?

Como sabemos que a causa de nossa dor é um elemento público, os agentes do estado, a reparação dos danos causados deveria ser também pública, incluindo atendimento clínico, com terapias públicas de qualidade. As terapias são de grande importância para o autoconhecimento do indivíduo, no mapeamento do motivo que fez com que a pessoa desenvolvesse tal ou qual distúrbio. Importante também para que a pessoa tenha uma vida de qualidade sabendo lidar com os gatilhos de suas crises.

Mas como ter uma vida de qualidade quando a causa disso chuta os portões com grossas botinas e diz gritando que chegou para levar sua alma?

O Estado consegue matar antes de apertar o gatilho.

Este texto é parte do livro “A Fortaleza das Mulheres” (2020), uma parceria entre o Instituto Pacs e Gizele Martins, comunicadora comunitária da favela da Maré.