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Fundamentalismo Religioso e Megaprojetos: o voto acima de tudo, o lucro acima de todos
Num canto cheio de raiva e de pena, o baiano Caetano denunciava “os riscos que corre essa gente morena, o horror de um progresso vazio” que mataram os mariscos e os peixes do rio Subaé. Da etnia Krenak, a pajé Dejanira também lamenta o assassinato do Watu (Rio Doce), pela mineradora Vale.
“O rio, pra nós, é sagrado. Faz parte da cultura. A gente ensinar a criança a nadar. Chamar chuva; o banho. Os remédios que dão na beira do rio”, afirmou a pajé, cujo nome indígena é Dhombré (guerreira). A morte do Rio Doce foi causada pela lama tóxica da Vale e Samarco, após o rompimento da barragem de Mariana (MG).
O caráter “sagrado” de um rio não está atrelado à lógica utilitarista. Ele não deve ser preservado “apenas” porque dá peixe. Mas, justamente, por ser um elemento interligado a outros e que, juntos, formam um conjunto vital ao ser humano: o clima, o alimento, a cura, o conhecimento, a ancestralidade, a identidade, a cultura, a espiritualidade.
Os rios, as matas, o mar, o vento, o céu, as pedras, o solo, as folhas, os bichos. O território! São elementos que produzem uma energia que rege os seres encarnados e desencarnados. Por isso são sagrados. Por isso viram deuses. Ganham nomes próprios, danças e mitologias; são cuidados e reverenciados.
Assim ensina o conhecimento de indígenas e descendentes de africanos que vivem no Brasil. Ou pelo menos daqueles que não tiveram sua cultura e espiritualidade assassinadas. Seja pela morte de um rio. Seja pela perseguição aos seus cultos. Seja pela destruição de seus territórios.
“Não podeis servir a Deus e a Mamom” (Mateus 6:24)
Sendo o território algo que produz materialidade e espiritualidade, não surpreende que os ataques sofridos por ele perpassem por esses dois elementos. E é aí que surge um casamento letal: grandes empresários e fundamentalistas religiosos.
No Brasil, ambos são capazes de produzir “milagres”. Os investidores de megaempreendimentos conseguem transformar água em lama; florestas em desertos; ar em pó; gente em lixo. Já líderes de determinadas correntes cristãs possuem o dom de converter fiéis em eleitores; fé em voto; religião em dinheiro.
Um exemplo que simboliza bem essa relação abençoada é o ex-deputado Leonardo Quintão (MDB). Mineiro, filho de pastor, Quintão é um político prestigiado pela bancada evangélica no Congresso Nacional, que o indicou para atuar na Casa Civil do governo Bolsonaro.
Na eleição de 2018, Quintão citou personagens bíblicos para justificar a importância de evangélicos atuarem na política. Pediu voto em defesa “dos valores cristãos” para lutar contra projetos que “afrontam a palavra de Deus”. Para ele, “numa democracia, a Igreja não deve ser a mão do Estado, mas sua consciência”. Com a bíblia na mão e muito dinheiro no bolso, fez carreira na política.
Cada vez mais, políticos se utilizam da religião para conquistar votos e se elegerem. Maiores e mais influentes, as bancadas evangélicas no Congresso e nas assembleias estaduais costumam votar favoráveis aos interesses das mineradoras, construtoras e corporações responsáveis por grandes empreendimentos. Quando a lei permitia, muitos eram financiados diretamente por elas, a exemplo de Quintão.
Mas o favorecimento político aos megaprojetos não é a única forma utilizada por essas lideranças. O discurso religioso também é usado para legitimar a ação das corporações, como destaca a pastora Romi Bencke:
“Primeiro, através de um discurso gerador de medo, ou seja, não se colocar contrário aos megaempreendimentos, pois isso representaria uma desobediência à vontade de Deus — exaltando os ‘benefícios’ que seriam trazidos para a cidade e para a igreja (geralmente as igrejas recebem doações destas empresas). A teoria da prosperidade também é outro instrumento, pois destaca as possibilidades de a pessoa trabalhar em um megaempreendimento e, finalmente, alcançar o sucesso”.
Romi, que é secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, também chama a atenção para a intervenção de lideranças religiosas na FUNAI, com a “presença de missionários proselitistas em postos chaves”.
Como o objetivo do atual governo federal é avançar no desmatamento para “passar a boiada” e fomentar a exploração extrativista, o fundamentalismo religioso acaba sendo o seu braço político. Assim, foi nomeado o missionário Ricardo Lopes para a Coordenação-Geral de Índios Isolados e Recém Contatados da FUNAI. Em março de 2020, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari denunciou o aumento do assédio de grupos missionários na região.
Ricardo Lopes é ligado à Missão Novas Tribos do Brasil, da qual foi missionário. O grupo desenvolve o trabalho de evangelização dos indígenas e, de acordo com denúncias, continuou atuando nas comunidades mesmo durante a pandemia de coronavírus, elevando os riscos à população indígena.
Ou seja, a atuação de políticos que usam o nome de Deus para alcançar o parlamento, secretarias e órgãos do Executivo, tem sido estratégica para ocupar territórios e definir políticas que beneficiem as grandes corporações.
Mas, como ressalta a pastora Romi, não se pode generalizar. Nem todas as correntes evangélicas trabalham com a “teoria do domínio” e há diversas instituições religiosas “que realizam um ótimo trabalho em favor da justiça socioambiental e procuram conscientizar suas comunidades em relação ao cuidado e respeito com o meio ambiente e populações tradicionais e originárias”.
O racismo no caminho dos territórios
Há, no entanto, líderes religiosos que legitimam a destruição dos territórios, em nome de um “desenvolvimentismo”. Ainda que, como bem lembrou Vera Baroni (Rede de Mulheres de Terreiro de Pernambuco) durante sua participação no encontro virtual promovido pela campanha “Tire os Fundamentalismos do Caminho”, por trás desses ataques há um componente racista.
“Esse fundamentalismo se funda no racismo, construído durante o século XVI e que cada vez mais está presente na nossa sociedade. Esse fundamentalismo que se diz religioso, que quer se esconder atrás do evangelho de Jesus de Nazaré, mas que na verdade é um fundamentalismo político, que tem um projeto de poder”, afirmou Vera.
Racismo que sempre esteve por trás das proibições de cultos religiosos de origem africana, no Brasil, e que ainda hoje demoniza entidades espirituais dos povos originários e tradicionais. Para os povos trazidos da África, a religião se tornou uma forma de organização para resistir à escravidão.
“A religião surge na tentativa das pessoas se comunicarem nessa nova morada (senzala). Uma forma de manter uma memória viva da diáspora, numa comunicação ritualística de sobrevivência e resistência. Enaltecer a magia negra e a cultura negra é falar e manter viva o motivo pelo qual a gente sobreviveu”, destaca Aline Lima, umbandista e coordenadora do Instituto Pacs.
Portanto, a destruição dos territórios e das entidades espirituais que se expressam na natureza, significa também um ataque à identidade e cultura de resistência dos povos. Com o apoio irrestrito de governos, a bancada da bíblia de mãos dadas com os megaprojetos avança sobre esses territórios. Num processo de extermínio em curso há mais de 500 anos, as populações indígenas e afrodescendentes seguem violentadas e vulneráveis.
O racismo por trás de “um progresso vazio” idolatra o capital e assassina territórios sagrados. E, assim, deuses seguem sendo mortos no Brasil.
Texto escrito por: Alex Pegna Hercog / Instituto Pacs