Entrevistas
#MulheresTerritóriosdeLuta: Defensoras de direitos humanos na América Latina
Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), publicado originalmente em duas partes no Medium e site do Instituto Pacs em 09/06/2020 e 08/04/2021
Tendo em vista o campo de debates Mulheres e Megaprojetos, o Instituto Pacs tem realizado uma série de entrevistas com mulheres lutadoras de diferentes territórios da América Latina. Compartilharemos hoje um fragmento da entrevista realizada com Teresa Boedo, ativista feminista e defensora dos Direitos Humanos. Desde a Guatemala, Teresa é também co-diretora da Iniciativa Mesoamericana de Defensoras de Direitos Humanos. A entrevista foi realizada por Marina Praça, coordenadora e educadora popular, e Ana Luisa Queiroz, pesquisadora e educadora popular, ambas do Instituto Pacs.
PACS: O que é luta para você e o que te move?
Teresa: Sou ativista desde muito jovem, natural da Galiza, uma região no noroeste da Espanha. Também nasci em um lugar com muitos privilégios, mas também com muitas desigualdades. Desde pequena estou no ativismo, minha formação sempre me orientou a trabalhar com mulheres, desde muito jovem e de uma forma muito organizada, mas também muito necessário para mim. Sempre digo que o feminismo salvou minha vida, de muitas maneiras, mas também conseguiu me tirar de transes e enredos muito complexos. A aproximação ao feminismo foi orgânica. Estive em diferentes espaços, mais territoriais, mais específicos, de diversidade sexual, de diversidade funcional. Tenho trabalhado muito com organizações e povos originários, e sempre estive em espaços de articulação em redes e na luta pelos corpos das mulheres, por justiça para as mulheres, pelo bem-esta. Isto é construir um sonho emancipatório que nos permita viver coletivamente, nós mulheres, e atender aos impactos e desgastes que este sistema patriarcal, racista e capitalista tem sobre nossos corpos, nossas emoções, mentes e energias.
Bom, para mim a luta é isso: articular, compartilhar, me enredar, pensar junto. É construir uma ação política entre as mulheres. O feminismo sempre foi meu espaço de luta, meu protetor, meu quadro político e minha proposta.
Também estou misturando minha carreira, ou seja, participei de diferentes processos de criação de metodologias feministas, de sexualidades diversas, de processos multiculturais, de reflexão e ação conjunta, de fortalecimento institucional, de criação e construção de pensamento político. E mais recentemente estou entrando no tema da cura da violência estrutural, como o cuidado tem que ser uma prática cotidiana, política, cultural e organizacional para construir esse bem-estar, fortalecer as redes da vida, transformar memórias corporais, sistêmicas, ancestrais, e dessa vida que todas nós levamos, certo?
PACS: Então, o feminismo está no centro da sua vida e luta? E a perspectiva do corpo, onde entra?
Teresa: Bem, se eu sou uma feminista pela autonomia, liberdade e emancipação das mulheres e procuro desmantelar, curar e destruir o sistema patriarcal heteronormativo como um paradigma onde todos os sistemas de opressão se sobrepõem, o racista, o capitalista, etc.
E sobre o corpo, eu acho que o assunto do corpo aqui é um ótimo tema, na verdade. Em outras palavras, para mim é um processo de constante transformação e reencontro. Sempre digo que estou em um processo de reencontro constante comigo mesma. Ainda mais agora, no contexto de um ressurgimento da violência em nossos países, onde estamos sentindo mais os impactos de toda essa violência sistêmica, o corpo assume uma posição prioritária para mim, para minha luta e, portanto, para a luta de todas. Porque é nele onde vemos muitos impactos e condições que devem estar na base para a construção da nossa proposta emancipatória, porque é no corpo onde todos os impactos do trabalho, do ativismo se refletem na energia, emocional, intelectual, e a nível físico. E é onde devemos começar a trabalhar. E para mim, colocar o corpo no centro, cuidar da vida, viver bem, ou seja, o corpo tem um papel fundamental, é peça chave nesse sonho emancipatório.
PACS: Onde está a arte em você e em suas coletividades? Quais potências a arte traz?
Teresa: No que diz respeito à arte, me parece que cada vez mais estamos nos aproximamos de propostas artísticas capazes de transmitir esse sonho emancipatório que temos, porque nós, mulheres, estamos ligadas à capacidade de criar e a arte vem muito com essa habilidade, que sempre nos associou com a capacidade de criar vida. A energia criativa que as mulheres têm é aquela que tem múltiplas manifestações por trás da arte, certo? Acredito que sejam múltiplas ferramentas que nos ajudam a realizar nosso sonho emancipatório e nosso bem-estar. Porque é por lá que também nos permitimos deixar ir, nos expressamos e é uma forma muito das mulheres, porque também implica coletivizar, implica deixar ir, implica cura.
PACS: Em seu corpo, de onde você sente que vem a sua força e onde você sente mais o impacto, a dureza?
Teresa: Acho importante falar nisso, eu tenho endometriose, que é supostamente uma doença que dizem que é crônica. Eu resistia muito em aceitar isso e tive que trabalhar muito nessa condição. Mas para mim, tudo realmente se manifesta no útero, primeiro se manifesta lá, nas genitais. Sinto também dores de cabeça e enxaquecas e toda a questão da indigestão que tem a ver com não ser capaz de digerir tanta merda … abarriga incha, diarreia constantemente e, além disso, dores musculares, ombros, cotovelos, articulações.
PACS: E sua força, vem de onde?
Teresa: Coincidentemente, também vem do útero. É o ponto mais vulnerável, mas ao mesmo tempo é o mais forte, porque é nele que me recupero, é onde me torno ciente, é onde recupero a minha força criadora.
PACS: Como você se cuida, o que é cuidado para você? Como você vê o cuidado? O que te deixa doente e o que te cura?
Teresa: Neste momento, me sinto muito desafiada a esse nível, devido ao stress e responsabilidade com o que lidamos. Estou em um momento no qual tenho que fazer muitos ajustes no meu dia a dia para ficar minimamente saudável. Neste processo de reflexão, porque o que quero dizer é que não fiz tudo, longe disso, para mim é um processo de reflexão constante. O cuidado tem que ser algo cotidiano e que necessita ser trabalhado em diferentes níveis. Pessoalmente, estou trabalhando na minha nutrição como um dos primeiros elementos que me causam cuidado e bem-estar. Estou trabalhando no nível corporal, preciso caminhar, correr, nadar, fazer algum tipo de massagem, etc. Quer dizer, estou dizendo a você como dimensões, não é que eu pratico tudo, quem dera! Essa dimensão, aquela primeira da comida e do corporal, que diz respeito ao corpo por fora e ao corpo por dentro, tem a ver com um trabalho emocional, preciso de um acompanhamento terapêutico, seja transpessoal, terapia integrativa, algum tipo de terapia emocional que me permita colocar tudo no seu lugar, ter um espaço para catarse, etc. Conhecer meus medos, minhas frustrações, minhas emoções. Tenho que trabalhar no nível energético e isso é algo que sempre esquecemos e acredito que os povos originários continuam nos ensinando e nos dando ferramentas nesse sentido. Em outras palavras, há uma questão do campo de energia, do espaço vital, da energia da sua casa, do seu espaço de trabalho, e tal, que temos que seguir… Que preciso trabalhar nesse nível. Limpar a casa, limpar o espaço, tomar banho de arruda, fazer algum tipo de aspersão, seguindo o calendário maia, certo? Atender às energias do momento, tê-las presentes, fazê-las conscientes, entender que não sou o centro do mundo, que existe um sistema que está aqui funcionando, que é uma energia que devemos honrar e agradecer.
Então, para mim, o cuidado também tem a ver com estabelecer limites no trabalho, no ativismo, na luta, porque a gente tem a tendência de nos abandonar, de nos desgastar. Eu falo porque eu faço constantemente. Na sexta-feira passada fiquei louca, não parei e meu corpo me impediu com cólicas menstruais, porque meu útero sabe quando não aguento mais, mas eu continuo e continuo, meu útero me diz “Eu vou pegar você com uma mega cólica para você ter que parar um pouco.” E aí está quando entra com todo esse poder que não há escolha senão fazer, então me obriga a abaixar meu corpo, me obriga a parar e por limites. Ou seja, no plano intelectual e mental, aprender a colocar limites para trabalhar, saber dizer não, saber dizer sim ao que é bom para mim, saber quando tenho que parar, continuar aprofundando com esse conhecimento, aclarar sobre o que me faz bem e o que não me faz bem.
Ter cuidado se não trabalho em todas essas dimensões, por mais que ande meia hora por dia, não é o suficiente para mim. Pra mim é uma questão integral, tem que ser do dia a dia, agora estou conseguindo refletir sobre isso e ter mais dinâmica, porque dentro das organizações a gente precisa coloca o cuidado no centro, entre as companheiras e de cada uma para si mesmas, isso é urgente…
Também num trabalho virtual que a gente faz, como cuidar, porque não estou olhando para você, como respeitar os limites umas das outras… também tomar cuidado nesse sentido… e como continuar nos fazendo tema de discussão porque precisamos do apoio das nossas organizações para nos conscientizarmos disso.
Bom, para mim, cuidar é um ato de justiça, que tem a ver com estar no mundo, cuidar da vida.
PACS: Você pode falar de maneira geral sobre o contexto centro-americano em relação aos megaprojetos, sua forma de operação, impactos e as relações de poder que sustentam esses empreendimentos?
Teresa: Então, o que eu queria aportar a respeito do aprofundamento do modelo extrativista na região e dessa necropolítica a qual estamos submetidas, é que há efeitos de violência, de despojo, de deslocamento forçado e repressão cada vez mais elevados contra comunidades inteiras, sobretudo comunidades indígenas, campesinas, afrodescendentes. Isso é uma tendência em que a violência é progressivamente maior e está forçando esse deslocamento massivo, cujo reflexo também vemos agora mesmo em caravanas migrantes na região. Essa luta também se faz sustentável pelo controle dos recursos naturais a partir dos territórios em que as pessoas estão saindo massivamente e isso é importante mencionar. As mobilizações, ou as forças de mobilização, a favor do direito à água, como em El Salvador e também na Guatemala, a partir da aprovação da Lei da Água, como no México, com tudo isso do novo Trem Maia e a exploração dos recursos naturais por um megaprojeto turístico; sofreram com a repressão e a forte violência por parte do Estado e das empresas extrativistas. Cada vez mais, essa violência e essa repressão aumentam, ademais, sem nenhum custo político. E também vemos que há um recrudescimento desses conflitos territoriais. Já não são lutas que permanecem nos territórios, mas os atores que neles intervêm se tornam muito mais complexos. Esse modelo extrativista também está se estendendo e expandindo na região graças ao maior poder que as forças armadas vão tendo nos diferentes Estados. Estão devolvendo o poder às forças armadas e aos militares e isso está provocando um controle territorial por parte dos militares, forças policiais e paramilitares. Dou como exemplo o caso de Honduras, El Salvador e agora mais recentemente na Guatemala, onde os governos estão crescentemente aderindo a uma política de ampliação das tropas de elite, tanto da polícia como das forças armadas, outorgando, fazendo processos de recrutamento massivo, aumentando as forças armadas do país em mais de 10 mil, 15 mil, 20 mil efetivos nos diferentes países. O que também nos preocupa muito nesse processo é o vínculo com a inteligência israelense, a presença de Mosak e a compra de armamento e equipamento bélico dos Estados Unidos.
Por exemplo, em Honduras o exército acaba de receber 4 milhões de dólares para o agronegócio. Desde quando o exército tem competência a nível de agricultura nos países? Então se firmam convênios desse estilo que fazem, unicamente, perpetuar ou facilitar um controle territorial por parte das forças armadas. E o que estamos vendo com muito horror é o aumento das diferentes tropas de elite. Cada vez inventam uma nova polícia — “direção policial de não sei o que”, ou seja, justamente para permitir essa presença que é maior, claro, a nível territorial. Também vemos que as políticas neoliberais recentemente aprovados nos países centro-americanos reduzem o orçamento em educação, em saúde, e o aumentam em temas de investimento estrangeiro e para as forças armadas, o que está aprofundando cada vez mais a desigualdade e o empobrecimento da população.
Esse modelo extrativista também se estende na região e prevalece em nossos países porque é fomentado por parte de atores do Estado. Isto é, com níveis de corrupção e impunidade enormes, para os quais, como dizia, não há nenhum custo político, o que faz com que esse modelo possa se amplificar. E, bom, o que vemos com maior preocupação é que esses conflitos territoriais estão vindo acompanhados cada vez mais de processos de criminalização e judicialização dos defensores da terra, do território e dos bens naturais. Agora vamos apresentar um informe mesoamericano dos últimos três anos (2017, 2018 e 2019), no qual vemos um aumento dos assassinatos especialmente de integrantes e líderes de movimentos campesinos indígenas, a frente de processos de defesa dos recursos naturais, como é o caso de Honduras e Guatemala. Preocupa, principalmente, o nível de assassinatos, mas o que vemos é uma maior judicialização e criminalização em todos os níveis, especialmente das companheiras que estão em defesa do território. Entendendo aqui a criminalização como um fenômeno que se demarca não somente dentro do poder judicial ou do sistema judicial, mas que vai desde campanhas de desprestígio, difamação, estigmatização do trabalho das mulheres defensoras, ameaças, assédios, ou seja, também por parte da comunidade interna às organizações. É um fenômeno que nos preocupa muitíssimo. Esses elementos se ampliam diante da permissividade, que o modelo extrativista está tendo na região.
PACS: Como a lógica patriarcal se relaciona com o modelo de produção extrativista neoliberal?
Teresa: Para começar, temos um mapa de atores muito complexo e obviamente patriarcal desde o momento em que vemos uma imbricação de atores estatais e paraestatais, mas também do narcotráfico. A região tem muita força e presença dos narcotraficantes, dos cartéis e las maras[1],e isso se imbrica com os poderes estatais. No entanto, há também nos Estados fortes vínculos com atores evangélicos e neopentecostais, que são historicamente patriarcais e abertamente antifeministas. E que se veem vínculos fortíssimos nas estruturas do Estado, mas também nos poderes militares e elites político-econômicas dos países. Não queremos perder isso de vista, mas também gostaria de mencionar o fato dos mecanismos regionais de direitos humanos estarem liderados por pessoas abertamente antifeministas e antigênero, contrárias ao debate sobre a desigualdade de gênero na região. Faço menção ao Magro da OEA[2], com sua agenda completamente ambivalente com relação aos direitos humanos, com um papel nefasto, sem ser capaz de se posicionar contra as repressões violentas dos Estados e tirando foto com atores bastante duvidosos em toda a região até Nicarágua, mas também na Guatemala e em Porto Rico. Para nós, o intervencionismo e as políticas neocoloniais por parte dos EUA da era Trump têm aumentado. Me parece que há um peso super patriarcal e neocolonial que temos também na região e que tudo isso igualmente vem acompanhado de uma profunda crise da esquerda, em que os aliados dos movimentos sociais ou a sociedade civil organizada estão desvirtuados. E o vemos com respeito à situação em Nicarágua, onde houve uma total negligência por parte das forças de esquerda em falar de uma crise sociopolítica no país.
PACS: Podíamos reproduzir a mesma análise de conjuntura sobre o Brasil também.
Teresa: Sim, e é o que falávamos, o tema da ideologia de gênero como um guarda-chuva antifeminista. Outro dia tivemos uma sessão com uma compa brasileira chamada Sonia Correia, que está realizando uma investigação com todos os atores antifeministas na região. Foi um webinar espetacular! Porque pensávamos que era uma coisa que saiu liderada pela igreja católica, mas não. Aqui houve uma imbricação de atores. Ou seja, há um efeito aglutinador bem pensado e bem estruturado de pensamento não tão radical ou extremista, ou conservador, porém que conseguiu através de campanhas como, por exemplo, “não se meta com meu filho”[3], que alcançaram um efeito aglutinador de atores que não necessariamente estavam originalmente em uma posição antifeminista ou antigênero, mas que foram conduzidos. Foram construindo essas ofensivas, na medida em que fomos avançando em nossos direitos. Ademais, para nós o perigoso é que tudo isso não vem somente da igreja católica, evangélica e etc. As ofensivas antigênero são igualmente apoiadas por empresas nacionais e internacionais, para seguir conseguindo influências nos diferentes territórios. Uma reflexão necessária é sobre como se imbricaram com esses diferentes atores, incluindo aqui também o crime organizado, para conseguir essa influência, essa presença.
[1] Las Maras é uma referência as gangues existentes em El Salvador.
[2] Organização dos Estados Americanos.
[3] Referência a campanha que promovida pela ultradireita que, dentre outros efeitos, busca retirar conteúdos críticos sobre a desigualdade entre gêneros dos currículos escolares, a partir do guarda-chuva da ideologia de gênero.