Entrevistas
#MulheresTerritóriosdeLuta: potências ancestrais às margens do Xingu
Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), publicado em 22/06/2020
A entrevistada de hoje da série com lutadoras de territórios da América Latina é Ana Laíde Barbosa, do Movimento Xingu Vivo, no Pará. Ana Laíde participará do terceiro episódio do Ciclo de Debates da Campanha #MulheresTerritóriosdeLuta, que terá como tema “Cuidado coletivo e ancestralidades nas práticas de (re)existência”. A transmissão ao vivo acontecerá no dia 24 de junho de 2020, às 17h, no nosso canal no Youtube e ficará disponível na plataforma. A entrevista foi realizada por Marina Praça, coordenadora e educadora popular, e Ana Luisa Queiroz, pesquisadora e educadora popular, ambas do Instituto Pacs.
Ana Laíde, nos conta um pouco da sua história e o que é luta para você?
Ana: Sou Ana Laíde Soares Barbosa, pescadora, nascida às margens de um rio chamado Tauá, no município de Santo Antônio do Tauá. Eu sou banhada pelas águas doces e pelas águas do mar. Sou filha de pescador, pescadora, de agricultores. Sou filha de povo escravizado. Meus bisavós foram escravizados, acorrentados e levaram desse mundo as marcas das corrente em seus corpos. Nós não dizemos lutar, porque nós estamos parados no nosso espaço e tempo, convivendo naturalmente com a natureza, com água, com a floresta. Por que a gente brigaria com a água, se ela nos alimenta? Por que a gente brigaria com a floresta, se ela nos dá tudo que precisamos? Nós não lutamos, nós nos defendemos. Quem luta é quem quer se apossar dos nossos corpos, águas e florestas. Eles é que lutam e que fazem a guerra contra nós. Nós não. Estamos aqui.
E o que te movimenta nessa defesa?
Ana: Quando tiram, derrubam ou cortam uma árvore é como cortar um dedo nosso. Nós sentimos dor. E quando sentimos dor nós nos defendemos. E é isso: a gente se defende.
Como e quando você se entendeu mulher ao longo da sua trajetória de vida e de defesa?
Ana: Quando fui violentada, eu ainda era criança. Percebi como querem nos transformar em objeto de prazer sem perguntar. Assim como a natureza também é destruída por puro objeto de prazer. O que é do chão para nós não vale nada, mas para quem derruba as árvores elas se transformam em carros do ano, nas melhores roupas finas, nos melhores apartamentos, em condições de viajar o mundo todo. Apenas pelo prazer, por objetos, pelo individualismo, para poder dizer que “pode” alguma coisa nesse universo, nesse mundo. Só por isso.
Você se vê nas mulheres do passado?
Ana: Eu sou movida hoje por frases, imagens, pelo acalanto da minha vó e da minha bisavó. Eu não entendia por que que elas repassavam códigos e lições de como lidar com a natureza. Com
o pisar o primeiro momento na terra ou passar por cima de uma grota de água, ou entrar numa mata mais fechada. Eu não entendia e a gente chamava de sermão, por que todo aquele sermão? Fui crescendo com isso e comecei a perceber que era simplesmente porque a gente não podia desrespeitar os mais velhos. E os mais velhos eram eles: a árvore, a mãe água, a mãe natureza, a terra. Então tinha que pedir licença! Nós também fomos criadas pedindo licença e tomando benção dos mais velhos e foi esse caminho que eu segui ensinada por elas. Por elas… Eu me vejo sim, nelas. Eu sou continuidade disso.
Quando a gente fala desses megaprojetos de morte, que vem avançando sobre os nossos corpos, sobre os nossos territórios, quais são os megaprojetos que você enfrenta diretamente? E como que você sente a presença dos impactos deles?
Ana: O maior que enfrentamos hoje chama-se Belo Monte. É a barragem feita no Rio Xingu, na volta Grande do Rio Xingu. O segundo maior projeto é a Belo Sun, a mineradora canadense que também está se instalando na volta grande do Xingu. Todos aqueles projetos, que para mim não são megaprojetos, são projetos de morte e projetos de morte não cabem nesse mundo. Não cabem numa vida onde a natureza está aqui fazendo seu equilíbrio conosco. Não cabem porque destroem e matam. Não existe compatibilidade desses projetos com o nosso. O nosso projeto é um rio livre, é um rio cheio de peixe com suas águas de manejos, com tudo que ele pode oferecer para nós. Um rio com seres vivos, seres encantados, visíveis e invisíveis. Então, é a natureza. Esse é o nosso projeto, sabe? Quem faz esses projetos de morte são ocos por dentro. Eles não têm solidariedade, não têm humanidade, não tem sentimentos. Aonde eles devem estar? Talvez seja nesse concreto, porque eles são como pedra.
E quando você vê um empreendimento como esse da Belo Monte, secando o Xingu, como é que você encara?
Ana: Eu sinto a morte. Eu sinto que eles [os encantados] estão em agonia, porque o local que estavam está sendo removido e destruído, então eu sinto a dor deles também. E eu fico me perguntando: “Aonde é que nós vamos nos encontrar?” Porque aqui era o território sagrado deles. E agora, onde é que estão? Onde vamos nos encontrar novamente? Isso fica na cabeça. Onde está a Cobra Grande? Onde está o Boto? Onde está a Iara? Aonde está o Curupira? Onde está a Matinta? Eles estão em agonia. O espaço deles está sendo violado. Sempre gosto de fazer uma comparação para o povo branco colonizador. Se o cemitério, que é um local sagrado para os entes deles que estão enterrados lá, fosse violado qual seria o sentimento deles? Será que eles iriam ficar quietos e sem reagir? O que eles iam fazer? E por que eles têm o direito de vir violar os territórios sagrados dos nossos povos? Por que eles têm o direito de vir violar o local sagrado dos nossos antepassados? E ficar por isso? Se fossemos nós fazendo isso nós seríamos enquadrados na lei de terroristas. Nós seríamos presos, confinados, mas eles não passam pela mesma lei que nós. A lei deles é diferente da nossa. Quem nos protege são os nossos antepassados e os nossos encantados.
Como foi a sua chegada nesse território e ao Movimento Xingu Vivo Para Sempre?
Ana: Eu já círculo nesse território já faz um bom tempo, mas desde 2014 como membro do Movimento Xingu Vivo Para Sempre. E, para quem compreende e está perto, é um movimento que se distancia dos outros. Isso me apaixona. O Xingu Vivo não é um movimento que está querendo conduzir o povo, e é por isso eu estou nele. É um movimento que tenta trazer as comunidades e os povos para que possam ser protagonistas da sua própria história, e esse é o seu papel. Não está para ditar o caminho, mas sim para dizer: “Vocês são protagonistas dessa história. Nós podemos colaborar! São vocês que vão dizer aonde a gente pode colaborar”. Por isso é um privilégio estar sendo coordenada pela Dona Antônia Melo, porque ela entendeu esse processo e ela rompeu com muita coisa para permanecer. Não é à toa que ela é chamada de deusa do Xingu, porque ela se diferencia de muitas lideranças… Ela nem é considerada liderança, é uma ente viva que percebeu esse processo da história. E é por isso que eu também tenho o poder de escolha e são esses elementos, são essas coisas pequenas, que me fazem ser Xingu Vivo. O Movimento nunca arredou o pé da sua história, nunca mudou de percurso, porque ia privilegiar um ou outro. Ao contrário! Quem tem que ser privilegiado é o povo, são os povos e eles têm nome e endereço. Povos indígenas, pescadores, extrativistas, agricultores, quilombolas, jovens, crianças, mulheres… O povo que é violentado 24 horas nesse território.
Como que você vê o seu corpo no meio disso? O que você carrega no seu corpo?
Ana: Morrendo aos poucos. É pouco de cada coisa. Vamos morrendo junto, mas também ressuscitamos. Assim como a água vai e vem, uma hora está turva, outra hora está límpida, e a gente vai se conectando, e vai ressuscitando, ressurgindo. E carrego a dor. O sofrimento. As lágrimas que brotam. Mas, também, a felicidade de ver a liberdade fluindo, vigorando, renascendo.
Você consegue perceber no seu corpo, em alguma parte específica, os impactos vividos?
Ana: No meu estômago, ele é o primeiro a sofrer o impacto. Eu sinto dor como se fosse uma gastrite. Já me disseram que é uma gastrite nervosa, mas não é. É a reação que ele tem diante de toda essa maldade que existe no mundo, um mundo doente. Sinto também nos pulmões com as crises de asma. São essas as partes do corpo que mais se afetam diante do sofrimento.
E você consegue sentir de onde vem a sua força? Você sente no seu corpo?
Ana: Da esperança dos olhos do povo, que mesmo perdendo tudo, ainda acha que pode e acredita em uma possível mudança. E de que um dia eu ainda posso ver o rio correr livre. Que a gente possa derrubar, destruir Belo Monte e que a gente possa restaurar a floresta!No meu corpo vem a força vem do coração! Eu também sinto no meu invisível, porque ele brota. É ele que dá essa força pulsante. Por exemplo, a gente tem que passar por cima disso, tem algo muito mais forte que é ver justamente essa claridade que a água está turva, está barrada, mas ela pode ir escorrendo aos poucos, deixar fluir como era naturalmente. Então a gente sente isso, também. E como tu expressa isso? Não tem como tu expressar, mas aí tu te movimentas. A tua língua fala muito. Os teus sentimentos falam. Os teus olhos falam. Meus olhos falam quando eu vejo a felicidade e lágrima. Lágrimas também de felicidade, sabe? O abraço apertado. Sentir o outro, é sentir essa energia que está vindo. É isso.
Como você respira em meio aos conflitos? De onde você acha que tira oxigênio para seguir na luta?
Ana: Primeiro fechando os olhos e buscando o fundo da minha alma, a minha respiração. É pelo sopro que vai se juntar com o vento e que eu o trago de volta para mim, que me oxigena, que me ressuscita e me dá força pra que eu possa continuar.
A própria luta pode ser um respiro?
Ana: Também, mas é muito mais sobre nos conectarmos e agradecermos pelas pequenas vitórias. A luta é necessária, mas nós não a queremos. Queremos confraternizar pelo belo, o novo, o renascer. A luta é necessária para que não percamos tudo isso e para não nos acomodarmos. Poderíamos deixar tudo “tranquilo”, mas não, ela é necessária. Não fui eu que trouxe a luta para minha vida e ainda assim ela começou muito cedo. Começou por causa do coração doente da humanidade que diz que a mulher não pode ter filho fora do casamento. O patriarcado está muito presente nas comunidades tradicionais, mas não foram elas que geraram isso, foi a colonização, o mundo ocidental que trouxe isso para cá. Não tinha isso entre o nosso povo, as mulheres eram livres. Todos éramos, mas impuseram coisas que foram moldando a gente. Trouxeram deuses, regras e leis que não conhecíamos. Trouxeram a falta de ética. Tentaram trazer uma moeda e fazer essa moeda ser a floresta, ser a água, ser os rios, mas essa moeda a gente nem come. Queriam transformar todo o nosso bem natural, tudo que a gente vê no mundo, o vento, o ar, a água, a floresta em uma moeda com a cara de uma pessoa que a gente nem conhece. Não é isso. Não se compra terra. Não se compra a natureza. Não se compra o ar. Não se compra o ser humano. Tentaram fazer isso conosco e ainda tentam, mas a gente resiste.
E nas coisas bem pequenininhas do dia a dia o que te dá um respiro?
Ana: Está difícil agora, mas é saber que ainda tem pessoas que lutam. É lembrar que tem povos indígenas lutando, que há mulheres lutando, que tem crianças felizes, ainda, brincando no meio da gente. São as pequenas coisas.
Falando em arte, onde ela está em você?
Ana: Na criatividade! Uma criatividade que não vai para o papel. Uma criatividade que não sei explicar. É uma criatividade que busca despertar a gente! A gente busca dizer que a vida não é morte e que ainda não estamos mortos, que podemos muito mais. É uma arte da linguagem, do saber raciocinar, pensar e trazer tudo que aprendemos com nossos ancestrais, com a nossa floresta, com as nossas águas e dizer: “Vem junto, né? Transforma conosco.”
E onde a arte está presente nas suas coletividades?
Ana: No pensar. Eu acho que o pensar é uma arte, mas um pensar para o bem e para o bem-viver, para o comum. A arte de pensar isso hoje e para que a gente possa manter o equilíbrio com a natureza, com os seres humanos, com os animais, com a floresta, com o ar, conosco, com os encantados… É uma arte de pensar, que está sendo destruída, estão arrancando a nossa última gota de esperança. Então pensar hoje, brotar isso novamente, é sim uma arte. E essa arte ainda é invisível. Existe arte invisível?
Quais são as potências?
Ana: O cantar. Eu vi a Luiza Munduruku trazendo forte o canto do Povo Munduruku dizendo “seguindo em frente”. Eu vi a arte da fala do Inaldo Gamela, dizendo: “Venham, cuidem da terra!” Então são esses elementos que essa arte aos poucos brota novamente. Essa arte foi abafada. Tentaram… Tentaram arrancá-la de nós. Tentaram matar, aprisionar, mas não se aprisiona, né?! Se colocar água na sua mão, você consegue guardar? Então, essa é a arte também, ela escorre.
O que é cuidado para você?
Ana: Cuidado? A Bíblia diz que um dos primeiros mandamentos diz assim: “Amar a Deus sobre todas as coisas, e ao teu próximo como a tu mesmo.” Eu quero usar essa palavra e dizer assim: “Amar ao próximo sobre todas as coisas, e aos deuses e às deusas com a todos nós.” Porque somos todos de deuses e deusas. Não todos, né? Mas os que estão lutando pela vida, é claro, porque quem luta pela morte não faz parte desse universo, não faz parte desse projeto. Isso é cuidar.
Como você se cuida?
Ana: Tentando não ter uma crise de asma e pra isso tenho que continuar lutando, respirando a floresta, pisando nela, tocando-a com cuidado, rezando junto com ela, sofrendo junto com ela, mas pegando o ar que ela também me devolve, para os pulmões e renovar esse ar poluído que tá dentro.
O que te adoece?
Ana: A maldade. E a maldade não é só com o ser humano. Eu fico doente quando vejo uma árvore caindo. Eu choro. Eu fico mal quando eu vejo as pessoas maltratando o próximo. O lugar delas é diferente do nosso, mas não respeitam o lugar que escolhemos para nós. Nós escolhemos estar aqui! Escolhemos viver na Amazônia, ou Amazônia nos escolheu, mas somos um elo. As pessoas criticam isso, destroem porque acham que a gente não tem que estar aqui. Querem expulsar a gente para a cidade. Que coisa! Nós escolhemos isso. Nós queremos isso aqui. É o meu pertencimento.
E o que te cura?
Ana: A liberdade das árvores e da natureza. A minha liberdade. A liberdade do nosso povo de pescadores e dos indígenas. Sem nos amarrarmos nas coisas que não queremos e estão querendo impor para a gente. Respeitem a gente! Respeitem o nosso modo de viver. Não vamos lá mexer com eles, nem sabemos onde eles moram… Então deixa a gente quieto!
E para finalizar, qual é a força que você traz dos encantados?
Ana: Eu nasci praticamente em um terreiro e eu circulava no meio da mãe Erundina, que é uma encantada. Eu circulava no meio do Rompe Mato que é o encantado das florestas. Circulava no meio do — eu acho que ele é meu grande mestre — Zé Raimundo que é o encantado das águas. Eu circulava no meio deles. Eles brincavam comigo, me protegiam. Sempre trouxe eles comigo, mas também sempre tive muita força. Quando eu vou na mata, quando eu vou na água eu sempre vejo. Sinto que eles estão ali, que estão cuidando da gente, mas hoje eu vejo que eles estão pedindo também, que eles estão em agonia. Eu comecei nessa luta — a que empurram a gente — em alguns lugares sagrados, e eu comecei a vê-los, num momento de mística, de contemplação, do nosso grupo. Então eu me retirava, fechava meus olhos e quando eu abria tinham outros seres que não eram só o nosso povo e eu dizia: “Meu Deus, o que está acontecendo?” E eles estavam lá, e eu disse: “Não, quem são eles?”. Várias vezes, eu comecei a enxergar lá, junto com a gente, eles parados, mas fazendo do mesmo jeito que nós estávamos, eles estavam. Comecei a pensar: “´É loucura da minha cabeça? Será?” Eu levei um tempo para entender que eram seres da floresta, das águas, daquele lugar, que estavam ressurgindo com a nossa força e nós estávamos chamando eles também no momento dos nossos rituais, das místicas e dos cantos para as águas, o fogo e a floresta.