Entrevistas
#MulheresTerritóriosdeLuta: a arte e a educação popular como libertação e respiro
Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), publicado em 28/09/2020
Em mais um material da série de entrevistas com mulheres lutadoras da América Latina na campanha #MulheresTerritóriosdeLuta, trazemos hoje uma conversa realizada com Luciana Melo, educadora popular do MST e que também tem atuado no MAM. Nascida no nordeste paraense, Luciana conta um pouco da sua trajetória de atuação em territórios atingidos por megaprojetos e o encontro com a arte nessa caminhada. O material foi produzido por Marina Praça, coordenadora e educadora popular, e Ana Luisa Queiroz, pesquisadora e educadora popular, ambas do Instituto Pacs.
PACS: O que é luta para você?
Luciana: Lutar significa correr atrás de alguma coisa, seja de um direito, seja uma possibilidade de ser, ter. As minhas experiências de luta estavam muito relacionadas com a luta de outros, e aí acabavam sendo minhas lutas também. Eu reconheço como luta quando eu entro no movimento estudantil, porque você reconhece uma pauta, sujeitos que estão em torno de uma mesma condição. Depois fui ser professora municipal de um munícipio do Pará, um lugar muito pequeno, que me sufocava. Aí fiz o concurso para professora de educação especial em Marabá e passei. Mas a minha relação com o movimento começa uns quatro anos depois. Eu era professora com foco na educação especial, me envolvia pedagogicamente em relação aos alunos, mas fazia ter a pauta da luta da deficiência como uma pauta minha, que é quando eu encontro o MST, uma relação que aconteceu via mulheres. Fui para uma oficina de teatro com as mulheres, mas foi muito louco porque eu não tinha uma relação com o teatro, começa desse encontro. Eu comecei a entender que a luta perpassa por outras formas, pela educação, pela formação e a arte. É construir processos formativos, com crianças, com mulheres. De lá para cá, eu venho participando de processos formativos que eu encaro como trincheiras de luta. Então, para mim luta é isso, construir processos de formação, é onde eu me vejo lutando, onde eu construí minha perspectiva de luta.
PACS: O que te movimenta para construir esses processos?
Luciana: O que me motiva é poder potencializar o que todo mundo é capaz de fazer. Inclusive eu. Porque quando eu potencializo alguém/a mim, eu tenho condição de potencializar você. E muita coisa que eu faço é de experimento meu também, eu não tenho formação em arte…então é isso que me motiva, é poder potencializar nas pessoas aquilo que elas são capazes de fazer, e o que elas são capazes eu não sei.
PACS: Em que momento da sua trajetória de vida você se entende mulher e mulher de luta? E como você se vê nas mulheres do seu passado?
Luciana: O momento que, aos treze anos de idade, fomos morar eu, minhas duas irmãs e minha mãe em Belém, e todo mundo achava uma loucura minha mãe fazer isso. Quando ela se separou do meu pai, eu tinha 4 anos de idade e a gente foi morar na casa dos meus avós para que minha mãe pudesse voltar a estudar. Ela sofreu violência doméstica, então era estudar para poder trabalhar. Quando ela resolveu ir para Belém fazer faculdade, ela ficou um ano sozinha lá e depois ela pensou “agora vou levar as meninas porque é importante que elas estudem em Belém”, e foi todo mundo contra. E aí eu acho que esse foi o primeiro momento que a gente teve a noção do que era ser mulher, porque éramos quatro mulheres. Diziam que a gente ia ser puta, que a gente não ia dar certo, todo mundo tentando tutelar a gente.
Para minha mãe era muito importante que a gente estudasse, então quando a minha irmã gêmea engravidou foi uma outra vez que eu tive noção que era uma mulher, porque a gente tinha 19 anos, ela engravidou, e foi louco porque estávamos sob a tutela de minha avó porque minha mãe estava em Macapá. Éramos quatro mulheres, só que agora com minha avó, e a minha irmã grávida. 4 mulheres cuidando da criança.
Depois, quando eu sofri uma violência sexual quando estava indo para o trabalho, eu tive noção que eu era mulher também aí, eu sofri um assalto e uma tentativa estupro. E isso me fez lembrar de outras estórias que eu tinha passado antes.
Então tudo isso me forja como uma mulher de luta, porque é isso né, você lutar pela independência, lutar, sua luta pessoal, de sair de casa com 20 anos de idade para um outro município, para dar aula, para trabalhar, então eu acho que tudo isso forjou.
PACS: Ainda nessa perspectiva da mulher que luta, em trânsito e movimento, como você sente a presença dos impactos dos megaprojetos?
Luciana: Eu não tinha noção que minha vida em Belém era impactada por coisas que estavam além da minha vida ali. O movimento estudantil me dá uma leitura política que eu me deslumbrava. O massacre de Carajás foi tema de vestibular para mim, que já me impactou. Mas, quando eu chego em Marabá e aí sim, porque primeiro que Marabá, para nós da região nordeste do estado, é o bang-bang, faroeste. Quando eu disse para os meus amigos que eu ia morar e trabalhar lá, eles disseram “nossa, você é louca, o que você vai fazer lá”. Era o lugar do garimpo, isso estava muito distante do meu corpo físico, do meu imaginário simbólico. Porque, mesmo em Belém, em Castanhal, eu tinha uma relação com o lugar que não perpassava, que eu não sentia o que era isso. Então, quando eu chego em Marabá, eu entendo que é isso. Que é o lugar de faroeste mesmo, que a lei que impera é a lei do poder político, econômico… lugar de estrangeiro. Assim, em todas as escalas que você possa imaginar, estrato social é maranhense, o colonizador é o goiano, aquele que vem por causa de gado, depois a mineração. É aí que esse olhar amplia.
PACS: Você consegue, de alguma forma, sentir a mineralização das sensações nesses territórios?
Luciana: Quando uma das minhas tias soube que eu estava indo para Marabá, acho que eu estava um ano lá… ela me ligou e disse “Luciana, você está morando em Marabá? Você conhece o pessoal da Vale? (…) “não, porque eu quero que o Tony (meu primo), vá trabalhar aí, se eu te mandar o currículo, você manda?” Então, no imaginário de muitas pessoas de fato, isso é construído de forma muito forte ali, onde está a mineração.
Para mim foi muito forte perceber a potência que os caras têm de colocar em nós o imaginário positivo. Eles têm esse poder. A Vale convidou o Grupo Arraial do Pavulagem, um grupo de cultura popular, para fazer um show em praça pública, e os caras fizeram uma apresentação. No primeiro momento, eu estranhei a aceitação do convite porque eu conheço parte da história, Arraial da Pavulagem e Vale. Estranhei. Quando nós chegamos lá, a Vale simplesmente distribuiu em praça pública um chapéu que é um símbolo muito forte do Arraial, com fitas coloridas. Em todo o cortejo do Arraial você encontrava pessoas na rua com o chapéu de palha e as fitas penduradas. A Vale distribuiu mais de 1000 chapéus de palha com as fitas coloridas, da cor dela, verde e amarela. Você olhava em praça pública de Marabá, todo mundo foi, muita gente foi para esse lugar, inclusive nós do movimento, da Universidade. Você via toda a praça de chapéu de palha com a cor da Vale. Para mim, isso foi muito forte e também me deu uma dimensão do nosso desafio, do quanto isso impacta a gente.
PACS: Como você acha que esses processos que você desenvolve conseguem contrapor esse imaginário que é construído?
Luciana: De toda a forma, eu tive espaços muito favoráveis, então eu vou dizer que é 100% (risadas). Eu estive nos cursos de formação de educação do campo, que envolvia alunos do movimento também. Ganhamos aqueles e aquelas que inicialmente não eram do movimento, porque a gente consegue construir na prática real, coisas concretas e eles conseguem perceber mudanças de perspectiva na forma de ser mãe, pai, de ser educador, de ser patrão, empregado. Eles falam “o que a gente aprende aqui a gente faz la, a gente faz em casa”. O fato de colocar uma xícara em cima da mesa faz diferença pra gente almoçar, então é mudar as perspectivas. Eu não preciso comer num lugar sujo sendo pobre. Então, nesse sentido, é fundamental a gente permanecer construindo.
PACS: Como você vê o seu corpo e o que carrega nele?
Luciana: Eu tive muitos problemas com meu corpo, porque era magra, porque tinha peito grande, porque não era para ter na região onde eu moro. Mas, não no sentido que eu neguei, mas em dado momento, eu descobri que era um corpo que necessitava, que necessita na verdade, de cuidados, em todos os sentidos, para continuar a luta, para não desistir da luta. O corpo da mulher — eu vivi várias experiencias, né?! — é um corpo com possibilidade de violência permanente. Pensando na sociedade que a gente vive, ele está exposto, colocado num lugar de violência. A autoagressão que cada uma de nós nos coloca em dado momento, para atingir um padrão, para atingir uma expectativa do outro e da outra que se torna um nosso.
O corpo é um lugar de passagem, o aborto, mais do que a maternidade, me colocou um lugar no corpo que foi muito forte. O lugar do corpo que pode cometer crimes vistos pelos outros. E o quanto o meu corpo ficou à mercê de uma não ajuda. E quanto toda essa dominação do nosso corpo nos coloca num lugar de falta de conhecimento sobre os nossos tempos, o que é forte em nós, o que é fraco em nós, o quanto é potente. O quanto o nosso corpo é lugar de passagem, de dor. Então, ter noção disso é importante para pensar o quanto, por exemplo, a luta nos coloca forte, mas também nos fragiliza.
PACS: De onde vem a sua força quando você pensa no corpo? Tem algum lugar do seu corpo que você sente mais sente os impactos?
Luciana: Vem de mim (risadas). Eu tenho muito medo. Então, a força vem muitas vezes do medo. Eu tenho medo de ser violentada, eu não tenho medo de morrer, eu tenho medo da forma da morte. Eu tenho muita vontade de fazer muita coisa, eu tenho medo de não conseguir fazer o que eu tenho vontade. Acho que é isso.
E pernas, os membros inferiores, são os lugares que eu mais sinto. Eu tenho uma experiência com as pernas que é muito louca. A minha vó amarrava minhas pernas, porque a gente sempre estava com as pernas separadas, então ela amarrava com fralda. Eu tenho uma lembrança corpórea das pernas amarradas que é uma coisa, eu não durmo em saco de dormir nunca, nunca. Porque é como se eu estivesse amarrada.
PACS: Você acha que a própria luta pode ser um respiro?
Luciana: Total, porque para mim, lutar é trabalhar, não são coisas diferentes. “Ah, hoje eu vou sair para lutar, hoje eu vou sair para trabalhar”, não… Entendeu?
PACS: Onde está a arte em você e quais as potências que ela te traz?
Luciana: A arte foi um lindo encontro, um encontro consciente, porque ela sempre esteve presente, de uma forma muito natural. Mas, quando eu me encontro com a arte no sentido de processos formativos, a arte não só como uma alegoria, não só como diversão, mas a arte como uma oportunidade real de construir alguma coisa, ela se torna o meu lugar, no final das contas. Porque essa vida doméstica também me colocou desafios, que é construir esse espaço como um espaço de produção, não só de reprodução…
A arte é uma possibilidade metodológica para mim. Então, quando eu descobri que eu posso ensinar alguma coisa e utilizar a arte como um método ou como recurso, foi libertador para mim, enquanto professora.
A relação com a arte manual também foi muito importante, tem sido. No período do aborto, eu fiz 100 bonecas Abayomi, e perguntaram: “mas tá fazendo bonecas por quê?” e eu dizia: “eu não sei, mas eu preciso fazer”. 45 dias em processo, fazendo bonecas. A arte manual como uma movimentação do corpo, para poder a mente não explodir, não sucumbir.
PACS: O que te adoece e o que te cura?
Luciana: O meu medo, é uma coisa que eu preciso vencer. O medo me paralisa. Eu sinto que isso me adoece porque eu quero muito ir, eu quero muito fazer, eu quero muito. Uma coisa que eu preciso desconstruir em mim é essa ideia de que eu não sou capaz. É construir uma autoconfiança mais altruísta, mais potente. Quando eu faço, eu descubro que eu sou potente.
O que me cura são os encontros. Hoje eu fiquei super feliz de sair de casa, de me arrumar, então isso me cura. A possibilidade de continuar circulando. O que me cura de fato é continuar insistindo nos encontros, aí isso me cura, porque eu me liberto de mim mesma, em alguns momentos. E aí, claro, um chá de camomila me cura, tem que ter uma cervejinha, uma boa música pra dançar me cura, uma boa noite de amor me cura (risadas), uma boa história, um bom filme, uma boa conversa, a possibilidade de ver o pôr do sol me cura, acho que são essas coisas que curam a gente, que às vezes esquecemos ou fazemos questão de sair do fronte delas para viver o martírio, porque a gente tem um pouco de sado as vezes né? Acho que é isso, e tomar consciência disso é um exercício, precisa ser um exercício permanente.