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Entrevistas

#MulheresTerritóriosdeLuta: a potência feminina na luta contra o Complexo Industrial de Suape

Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), publicado em 28/09/2020

Dando sequência à nossa série de entrevistas com lutadoras de territórios da América Latina na campanha #MulheresTerritóriosdeLuta, compartilhamos hoje um trecho da conversa com Vera Lúcia Domingos, presidente da Associação dos Agricultores do Engenho Ilha, em Ponte dos Carvalhos, Cabo de Santo Agostinho (PE), território impactado pelo Complexo Industrial de Suape. A entrevista foi realizada por Ana Luisa Queiroz, Educadora Popular do Instituto Pacs.

Vera Domingos | Foto: Acervo pessoal

PACS: O que é luta para você? O que te movimenta?

Vera: Luta para mim é o que a gente faz aqui, no Engenho Ilha, todos os dias. Luta pela busca do direito, luta pela permanência dos modos tradicionais de viver no território. Todo dia na ativa, se reafirmando como agricultora, como fomentadora do direito e nessa busca constante de intervir nessas decisões tão importantes em nossas vidas. Luta faz parte da nossa existência.

Me movimenta a vontade de permanecer em nossos territórios, colocando os pés no chão. Estar plantando e estar cultivando a nossa terra quando a gente quiser. Me movimenta saber que o senhor José, a dona Maria, todos têm direito a ter sua identidade preservada. Direito aos seus modos de vida tradicionais.

PACS: Agora falando um pouquinho mais sobre você, sobre ser mulher, você se vê nas mulheres do passado?

Vera: Eu me vejo na mulher que é dona Iolanda, já falecida. Uma mulher muito forte, que conviveu conosco muitos anos na Associação. Eu me vejo em Marluce da Paz, que é uma de nossas conselheiras. Eu me vejo em dona Luzinete, que até hoje aguarda uma decisão do Estado por uma indenização, que teve seu esposo partindo de uma forma trágica, no meio da rua com infarto, depois que ficou sabendo que não seria indenizado. Eu me vejo em todas as mulheres da Associação. Mulheres do presente, e mulheres que já se foram. E eu me vejo, hoje, ainda mais como mulher do que antes! Eu não sou mais aquela mulher que abaixa a cabeça para o macho quando ele fala. E eu posso dizer que, infelizmente, eu já fui dessas. Eu descobri que ser mulher é muito mais do que ser dona de casa, ser mãe e ser a esposa. A mulher tem seus direitos, ela tem a sua busca constante por sua identificação. A mulher é o que ela quer ser. É para ela estar onde ela quer estar.

PACS: Como você se entendeu enquanto mulher ao longo da sua trajetória?

Vera: Eu tinha um casamento, hoje sou divorciada, onde alguém ditava em minha casa o que deveria ser feito. Um cabra extremamente machista e perverso, que entendia que o direito da mulher se resumia na lavagem da roupa, no cuidar da criança e nos afazeres da casa. Eu saio dessa vida miúda que estava, vou estudar, fazer magistério às escondidas, terminar o meu Ensino Médio. Escolhi fazer isso porque ele trabalhava à noite. De dia ele dormia, quando ele saía, eu ia para escola. Quando ele voltava, eu tinha voltado. Terminei meu Ensino Médio desse jeito. Quando foi no dia da minha formatura, eu disse: “Ó, tô me formando.” “No quê?! Mas o que é isso?!” E quase que a casa caía, porque era uma mulher subversiva, parecia pouco, mas era muita coisa para quem não tinha oportunidade e não podia. Daí começou essa minha vontade de crescer cada vez mais. Conheço a Associação e vou trabalhar lá como professora primária comunitária. Ali, começo a conviver com mais homens machistas, que rotulavam a mulher como uma mula, olhavam para mulher como se ela fosse um objeto. Convivi com esse machismo nojento no meio da Associação. Então, quando eu comecei a ver como eu poderia estar acima daquilo, perpassar aquele machismo. Ali começou a minha luta, enquanto mulher, dentro daquele espaço que só existiam homens. Eu comecei a sair do meu casulo de mulherzinha, para me tornar quem eu sou hoje.

PACS: Como foi esse processo?

Vera: Comecei a fomentar em outras mulheres essa saída do casulo também. Conheci outras mulheres, outras mães e comecei descobrindo muitas violências. Violência sexual, violência doméstica, a questão do machismo mesmo imperar no nosso meio, e a gente começou a dizer: “Ó, vamos modificar isso aqui. É por aqui que a gente vai modificar.” Levei várias advertências na Associação, porque ficava instigando as mulheres a serem diferentes. De uns 15 anos para cá, a coisa melhorou, abrimos espaço para a gente trabalhar essa questão do feminismo dentro da instituição. A gente fazia palestra com as mulheres, a gente contava para elas o que deveria ser feito ou não com o nosso corpo. Que era propriedade nossa, que era espaço nosso. A gente tinha que dizer o que queria, o que não queria. Algumas mulheres estranharam o linguajar, se questionavam também, até que a gente vai se aceitando, né? A gente vai se conhecendo, as mulheres vão se conhecendo e vão vendo que, de fato, não era aquilo que elas pensavam. Não estavam ali só para procriar, estavam ali para se amar e serem amadas. Houve algumas dissoluções de casamentos, mas também houve novos casamentos. Então, eu acho que partiu disso aí, toda minha trajetória como mulher e como eu me via e como eu me vejo hoje. Mudou também aqui dentro da minha casa. Eu coloquei o macho que estava aqui dentro no lugar dele, e comecei a dizer: “Ó, o caminho é esse aqui, se der, deu, se não deu a gente parte, e a gente resolve”. Assusto muitos machos por aí. Paciência, eles que eles sofram.

Foto: Acervo pessoal

PACS: Como você vê o seu corpo? O que você carrega nele?

Vera: Meu corpo é minha máquina de prazer! Me dá tanta coisa boa! Meu corpo é meu, ora! Quem quiser aceitá-lo, que aceite, se não quiser, eu aceito sozinha! Eu sei que eu dou um estrago! (risos)

Eu venho de família que considera que a mulher tem poucos direitos, que sexo era pecado, o corpo não poderia ser manipulado, não poderia ser tocado. Minha mãe teve câncer de mama, nunca se tocou, porque disse que era pecado tocar na mama dela. Então, eu acho que meu corpo carrega toda a minha força enquanto mulher, meu erotismo, minhas vontades. Eu conheço meu corpo, eu conheço cada ponto que ele necessita, que ele precisa que eu cuide, né? Eu tenho que cuidar do que é meu. Eu carrego no meu corpo tudo que eu acho de bom em mim, sabe? Com seus defeitinhos, com as suas imperfeições. Mas é meu! Enquanto mulher, enquanto fêmea, carrego nele tudo que eu gosto de usufruir. E não me questiono muito com relação ao que o outro ache. Quero estar, lógico, à altura de agradar alguém, mas se não agradar, paciência! Eu me agrado, eu gosto de mim e eu me aceito.

PACS: É possível perceber assim, especificamente no seu corpo, os impactos vividos pelos megaprojetos? Onde que esses impactos são sentidos?

Vera: Há momentos que a gente se agride, devido à luta. Digamos, tem hora que a gente está tão envolvida na luta, tão machucada, que às vezes a gente se esquece de cuidar da gente. Eu digo da gente, do nosso corpo, da nossa mente, do nosso interior… A gente sobrecarrega essas pernas, esses pés… A carga perversa desses megaprojetos, dessas empresas que estão aí, dessas pessoas que estão gerindo essa empresa. E a gente se machuca muito, com sol, sem cuidados, com falta de cuidado com a estrutura corpórea. E isso eu estou falando da parte da matéria. No espiritual é muito mais. Você cansa sua mente, sobrecarrega, você tira as suas expectativas do bem, você começa maquinando coisa ruim em sua mente, um estado de depressão. E isso tudo acarreta num todo. Num corpo todo. A gente mexe com todo organismo. Então, eu tenho mais enxaqueca, eu tenho mais dor de cabeça. Minha pressão sobe mais, eu tenho mais taquicardia, eu deixo de comer. E vejo isso nas companheiras também. Quando a gente faz uma oficina com mulher, com terapia de aromas, as mulheres se deleitam. “Vera, eu quase que tinha um orgasmo!” Eu disse: “Mulher, por que não tivesse?! Pelo amor de Deus!” (risos) A gente está aqui para viver mesmo o que a gente quer! Nesses momentos que a gente fica solta, envolvida, elevada, sabe? E aí a gente vê que o corpo fica sã. Mas, tem momento que essa luta deixa a gente doente, literalmente doente.

PACS: Que lugar do seu corpo você vê que vem a sua força?

Vera: Vem da minha mente. Eu tenho uma mente muito boa, eu tenho uma mente muito fértil. Essa força que eu tenho assim, interior, essa força mental, ela sempre me faz sobressair. Sempre! Quando parece que tudo está dando errado, tudo está perdido, eu dou aquela respirada fundo. Eu fujo. Eu fujo um pouco de tudo que está na minha frente e vou para um lugar reservado, vou para o sítio, vou para mata, que eu amo. Vou dar uma respirada, uma energizada. E quando eu volto, eu volto muito melhor. Mas a minha mente, ela tem que estar sempre sã. Porque, através dela que eu tenho outras propostas. Saio daquela história de depressão, que muitas vezes nos toca, que é inevitável. Também estimula minha criatividade, entendeu? Eu gosto muito de escrever, gosto muito da minha parte cognitiva. Isso tudo faz com que eu tenha uma sobrevida, um estímulo maior. Eu acredito que minha mente é muito fértil, sempre trabalho para não perder essa minha essência.

Foto: Acervo pessoal

PACS: Falando agora dos megaprojetos, enquanto uma mulher de luta, como você sente a presença e os impactos do Complexo de Suape?

Vera: É doloroso para a gente falar sobre esses megaprojetos. Complexo Suape, para o Governo de Pernambuco, desde antes de outros governadores, era a menina dos olhos do Estado, e continua sendo a menina dos olhos do Estado. Mas a luta é muito grande, avançamos dois passos e, logo depois, retrocedemos. A gente vê muito isso, quando a gente chega diante de um juiz, um advogado nosso mesmo. É complicado lutar contra um megaprojeto, seja ele municipal, estadual ou federal. Se for o Estado e for da forma que é Suape, porque nesse caso estamos falando de um grande porto que tem mais de 100 empresas dentro, que é um megaprojeto. Então, a coisa é bastante complicada…

Vamos às autoridades públicas reivindicar nossos direitos de permanência nos territórios e nos dizem que Suape tem o total direito de permanecer naquela área. Sem reconhecer a nossa luta, sem reconhecer o direito da agricultora que estava ali. Já teve situação do comissário da polícia dizendo que não iria fazer o boletim de ocorrência. Quer dizer, a gente fica nessa situação perversa que é essa estrutura do megaprojeto e sabendo que o delegado não quer fazer nada porque acha que vai brigar com o Estado. O comissário não quer se envolver, porque acha que o Estado tem direito, acha que nós somos invasores, acha que nós somos os infratores. Então, respondendo à sua pergunta, os megaprojetos, de uma forma perversa, eles atravessam nossos direitos, em muitos casos destroem nossos sonhos. O machismo impera nesses projetos, onde as mulheres — principalmente as mulheres — não têm direito de fazer reivindicações. Dizem que a gente está com “politicagem”, dizem que não temos o que fazer em casa. E eu tenho que me sobressair, tenho que dizer que estou aqui para defender meus direitos.

PACS: E como respirar em meio a esses conflitos? De onde tirar oxigênio para seguir nessa luta?

Vera: No meu caso, viver em um programa de proteção não é fácil, a gente fica com uma vida limitada, a gente fica com uma vidinha, assim, dando informação de onde você vai, com quem você está, onde você está. Uma pessoa que é livre como eu, que tem uma vontade de liberdade extraordinária, e tem que estar ali ó, regrada. Muitas vezes, eu me vejo sufocada, desesperançosa. A maioria das vezes eu estou num estado, absorvida pela luta e esqueço — na maioria das vezes — um pouco de mim, deixo um pouco de quem eu sou, para viver mais a luta. E eu vejo que não adianta, eu tenho que voltar, e eu volto, respiro fundo de novo. É aquilo que eu te disse, eu fujo e vou para um lugar que pouca gente me conheça, e eu vou respirar fundo lá, vou escrever. Vou botar no papel o que vejo, o que quero. Aí vou sonhar um pouco, e aí a gente vai. A luta fortalece. Ela te dá fôlego também. Ela te torna mais forte. Mas se você parar, você também não vai querer estar ali. Então, a luta já faz parte da nossa vivência. A luta já é a nossa história. Agora que, vez ou outra, a gente precisa dar uma emergida para respirar, a gente precisa.

PACS: Onde está a arte em você?

Vera: “A arte em mim”. Eu fui logo para um lado, que eu acho que foi um lado que tanto me negaram. Então, eu fui negada a essa parte sexual da mulher, da volúpia da mulher, da vontade da mulher. Eu não conheci isso de outra mulher, eu descobri isso em mim. É diferente, é muito diferente! Hoje, eu converso com a minha filha abertamente sobre sexo, vontade, sexualidade, erotismo. A gente não tem que agradar a ninguém, a gente tem que agradar a gente, a gente tem que olhar para gente. Eu falo com meu filho, que tem 30 anos, e digo abertamente: “O homem tem que tratar a mulher muito bem. E se ele não tratar bem, outro vem e trate. Se o outro não tratar bem, ela sabe se tratar.” Meu filho morre de rir! Então, eu descobri essa parte em mim da fera contista, que gosta de contos eróticos. Foi dessa negação que eu entendi a arte em mim. Eu gosto de contar para outras mulheres, para outras pessoas. Homens e mulheres, quem se identificar com eles. Que a escrita seja livre, que voe, que tenha onde pousar, que pouse onde quiser pousar. Eu me encontrei nos meus contos dessa forma, na negação. Foi negado uma vida inteira, e você sabe que aquilo existe, que aquilo é importante, que as pessoas são hipócritas porque gostam, mas não querem falar. Aí tem um monte de baboseira que a gente vai desmistificando e vai colocando no papel para ficar legal. Para outras pessoas se deliciarem, se deleitarem… E saberem que a vida é muito boa, é muito bela e tem que ser vivida mesmo!

PACS: Onde você vê a presença da arte nas coletividades que você faz parte?

Vera: Eu vou te dizer que eu não só escrevo contos, né? Eu tenho outras artes também, como pintura, como confecção de bonecas, artesanatos. Mas isso se dá no encontro entre mulheres, nos nossos espaços de conversa. Mas, esses coletivos, das conversas que a gente tem, das oficinas, no fazer junto e permitir com que as mulheres reflitam, se escutem e entrem em contato. É nessa parte que eu uso muito minha arte, dos meus contos, conversando sobre eles com as mulheres, e as moças. Você faz com que outras meninas se identifiquem, se reconheçam e não pratiquem os mesmos erros das mães, das avós… Ninguém pode tocar no que você não quer. Que você não se permita tanta coisa que acontece com uma mulher. Então, eu sempre trabalho essa parte com as nossas jovens, com as “meninas-moças”, que a gente chama aqui, converso bastante com elas, elas gostam muito. Nesses coletivos, eu passo a minha arte para essas pessoas. Bem com a linguagem boa, que elas entendam. Eu sou apimentada, né? Aí eu deixo um pouco de pimenta no fogo. Faço com que elas fiquem mais aguçadas, como mulheres, para saber que não são esses machos que mandam em nada não, quem manda somos nós. Quem tem que mandar, somos nós.

PACS: E quais potências você acha que essa arte traz?

Vera: As mulheres se auto identificam e criam seu espaço, vão deixando de estar naquele sistema de opressão e falam o que acham, o que sentem. Se identificam com a história de luta, com ter um conhecimento de tensão dos seus corpos. Isso é tão gratificante. Conheço mulheres, senhoras e jovens, que têm vida ativa, falando sexualmente. Então, a gente começou a trabalhar isso por meio dessas vivências em oficinas, em conversas na beira dos fornos, na beira do fogão, fazendo geleias. E nas reuniões mesmo de mulher, nas rodas de conversa, a gente começou a desmistificar essas ações, esses tabus que os homens têm e esse poder que eles exercem sobre essas mulheres. A potência mesmo, que a gente sabe que existe, é essa quebra dessa hegemonia do homem sobre a mulher, sobre o corpo da mulher. Inclusive, a participação das mulheres nas reuniões, nos movimentos, nas ruas, nas oficinas, aumentou muito. A gente vai conversando de sítio em sítio, jogando conversa fora com as mulheres, e elas estão lavando roupa, a gente está junto. Estão fazendo comida, a gente está junto. A gente está ali, no dia a dia, sempre que pode, a gente toca no assunto sobre quem eu sou, quem manda em mim? Qual é a minha vontade sobre o meu corpo, sobre a minha mente? Que ninguém venha te manipular do que você deve aceitar, que o outro faça com você, do que o outro manda em você. Você é a dona da sua vontade. Os abusos que nós víamos, não vemos mais. As mulheres que eram espancadas e violentadas por seus machos, a gente não vê mais.

Conversamos, dialogamos sobre o cuidado de cada uma com si mesma. Tinham mulheres em nossa comunidade, para você ter uma ideia, que não usavam um hidratante. Tinham medo de se tocar, porque achavam que o seu marido poderia achar que ela estava se masturbando. São coisas bastante absurdas, que a gente vai analisando e vai vendo que tem meios da gente trabalhar isso nas mulheres, que estão em pleno século XXI vivendo isso. Então, a gente começa a fazer kits com hidratantes, com perfumes, com esmaltes, com lixa de pé. Tem mulher que não podia aparar ponta do cabelo, porque o marido já achava que era por causa do macho. Não podia pintar a unha, porque se pintar a unha de vermelho, era uma prostituta. Então, ainda existe isso. E a gente, com o nosso trabalho, com o nosso fazer, a gente conseguiu desmistificar muita coisa. Então, eu acredito que essa arte que a gente tem usado, tem potencializado bastante aqui no nosso meio. Fazer com que essas mulheres entendam quem são elas, né? Eu acho que faltou isso lá atrás, com muitas de nós.

PACS: O que é cuidado para você? E como você se cuida?

Vera: Cuidado, para mim, é me fazer um carinho. Enquanto ser humano, enquanto fêmea, enquanto mulher, dona de mim, da minha cabeça, do meu corpo. Me reconhecer nos mínimos detalhes. Um ponto mínimo que me dá prazer, o cuidar é eu estar envolvida comigo mesma. Depositar todo meu carinho comigo. Não esperar que o outro esteja pronto para cuidar de mim, mas que eu, enquanto Vera, enquanto a fêmea, enquanto a mulher, enquanto a loba, esteja para me cuidar. O meu orgasmo enquanto mulher. Eu acho que esse está o meu cuidado. E isso parte tanto de mim, tanto do corpo, quanto da minha mente. Se o meu corpo estiver bem, a minha mente vai estar bem. É eu estar preocupada com o meu mínimo para que o meu máximo esteja bem. Me olhar no espelho, gostar do que vejo. Dizer, ó: “Tô viva, tô pronta para viver hoje. Se for somente até hoje, eu vou estar feliz comigo.”

PACS: E nesses processos todos, o que te adoece? E o que te cura?

Vera: O que me adoece é ver algumas pessoas do nosso meio desfazendo tudo que a gente faz. Para mim, o adoecimento parte disso, do preconceito, da omissão da justiça e das instituições. A falsidade de algumas pessoas que parecem compartilhar a luta, mas na verdade não. A morosidade da justiça é um mal que adoece, e a gente tem que conviver com eles. Assim, precisamos estar sempre reivindicando, isso faz parte da luta.

O que me cura é a resiliência. De dizer sempre: “Vamos para frente! Vamos avante, firmes!” Porque se isso não existir, a gente vai sucumbindo e morre. Então, para mim, são duas coisas que andam juntas: a minha resiliência e a minha resistência. Isso me faz estar viva e estar na luta.

PACS: São questões amplas, mas que ao mesmo tempo tocam a gente cotidianamente, né?

Vera: Eu sou muito feliz do jeito que sou. Quando falei assim, que os homens da Associação eram machistas e nos tinham como mulas, é porque eu era a mulher que pesava 55 kg, tinha um corpo de manequim, tinha uns cabelos pelo meio da cintura e esses homens eram todos doidos. Hoje, eu sou a mulher que está com 96 kg, que sou uma preta maravilhosa (risos), que só o siri na lata, mas que sei me impor, né? E sei tudo que quero. Hoje, eu sou bem mais feliz, tanto quanto mulher, me realizo muito mais, me conheço muito mais, me aceito muito mais. Já tiveram momentos em minha vida que eu pensei em suicídio, pensei em loucuras, e hoje eu me vejo muito forte. Eu tenho um orgulho da peste de mim, sabe? Eu vejo que eu posso avançar muito mais. Eu tinha essa capacidade e não me deram essa oportunidade. E hoje eu me dou essa oportunidade! Ano que vem, vou me formar em Serviço Social, já estou pensando em mestrado, eu já penso em doutorado, eu sou uma pessoa hiper ambiciosa com relação aos meus estudos. Eu fui 27 anos casada, 27 anos de casada com uma figura perversa. Que me fez muito mal. Mas que, de 5 anos para cá, eu sou uma nova criatura, sabe? Eu descobri que eu tinha vontade, eu descobri o meu corpo, eu descobri o mínimo que eu tinha, que era meu, que eu não sabia. Eu me amo hoje, sabe? Eu não preciso que ninguém diga que me ama, que ninguém me queira, que ninguém toque em mim. Se quiser tocar, beleza, a gente se toca. Se não quiser, vá para ‘conchichina’, porque eu sei, me conheço muito bem. Então eu sou muito feliz. Nossa! Eu sou a felicidade em pessoa!