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Entrevistas

#MulheresTerritóriosdeLuta: ser-natureza como trincheira

Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), publicado em 17/08/2020

Em mais uma edição da série de entrevistas com mulheres lutadoras da América Latina, hoje traremos a conversa feita com Zica Pires, do quilombo Santa Rosa dos Pretos, no Maranhão. Zica participará do sétimo episódio do Ciclo de Debates da Campanha #MulheresTerritóriosdeLuta, que terá como tema “Mulheres e territórios atingidos pela Vale S. A.” A transmissão ao vivo acontecerá no dia 19 de agosto de 2020, às 17h, no nosso canal no Youtube e ficará disponível no mesmo, junto às transmissões anteriores. A entrevista foi realizada por Marina Praça, coordenadora e educadora popular, e Ana Luisa Queiroz, pesquisadora e educadora popular, ambas do Instituto Pacs.

Zica Pires, do quilombo Santa Rosa dos Pretos, no Maranhão | Foto: Instituto Pacs

Pacs: O que é luta pra você? Por que você luta? O que te move?

Zica: Lutar é ir contra essas ideologias de morte. Não dá pra pensar em outra forma porque há muitos milênios a gente pensa dessa maneira. Não tinha necessidade de se lutar antes, apenas de viver. Hoje, se luta para sobreviver. E se luta para sobreviver porque há brancos que, de algum modo, são uma raiz estragada dessa nação primeira da qual eu pertenço. Então, lutar é muito complexo. O que me motiva é buscar viver de novo.

Pacs: Como você se identifica como mulher?

Zica: O que é ser mulher, de fato? Porque isso também é uma construção. Ser feminino é uma construção. Eu sei que eu pertenço a uma natureza diferente de outras naturezas. Essa natureza que eu sou hoje vai compor outra que vai vir depois de mim. Eu não sei se eu me descobri mulher, mas eu tenho certeza que eu me descobri natureza. A minha natureza é um fragmento de uma maior. Eu não acredito muito nesses rótulos que passam a dar. Na minha cabeça não funciona assim. Eu sinto que eu sou uma natureza que não precisa de rótulo nenhum.

Pacs: Você se sente atingida por esse modelo de desenvolvimento e os megaprojetos?

Zica: Esses modelos de desenvolvimento atingem no momento em que a gente fala em “des-envolvimento”. Essa palavra em si já assassina todas as naturezas. Ela diz que vai separar o que está envolvido. Na lógica é isso: eu vou “des-envolver”. Eu não quero. Eu quero estar envolvida cada vez mais. O envolvimento serve, o desenvolvimento não.

Pacs: Como você vê e sente o seu corpo? O que você carrega nele?

Zica: Eu sinto ele como uma parte furiosa de uma natureza maior e que, às vezes, está calmo, em uma tempestade que vai iniciar, mas que de repente escurece e fica tudo tranquilo — porque se clarear dá problema. Às vezes, eu sou a natureza em curso de fúria quando eu vejo violências que são cometidas todo dia, desde sempre. Então, quando eu olho para o que aprendemos de forma mal ensinada a chamar de corpo, eu vejo marcas que não são visíveis, porque não são coisas superficiais, mas que estão dentro. Curioso porque eu olho bastante para essa casca porque ela me faz voltar todo tempo ao passado. Não dá para pensar em um amanhã, que é hoje e que já foi ontem, esse passado, sem olhar para o que está atrás. Eu não posso ir contra o que vai acontecer para frente, mas eu tenho que saber o que aconteceu até esse momento. Ver e rever quantas vezes preciso for esse processo que se deu.

Pacs: Onde e como você sente esses impactos do desenvolvimento no seu corpo?

Zica: Quando eu escuto isso, esse “des-envolver”, começa pelos pés, que é raiz. Se te cortam os pés, você não tem mais essa ligação direta, te cortaram as raízes, seu contato maior. Depois eu penso no tronco, como uma árvore arrancada pela raiz. Vão cortando essas raízes e de repente não cortam o tronco, eles partem para os galhos e para a copa. Vão arrancar os galhos que eu entendo como essas extensões, que é como nos seguramos. Depois eles tiram a copa, que é arrancar a cabeça. Depois, violentam o que seria o tronco da árvore e o que a gente chama de tronco também — porque é. É dessa forma. Esse des-envolvimento arranca os pés, arranca os braços, arranca as mãos, arranca a cabeça e depois estupra o tronco.

Pacs: De onde você acha que vem a sua força? De onde você tira oxigênio para seguir na luta?

Zica: A minha força vem dessa ligação. Vem dessa passagem do pé. Se eu não tenho contato, eu não consigo sentir as coisas. Eu tiro oxigênio das folhas, literalmente das folhas, porque é o que ainda tem de puro. Eu sou uma criatura do mato, então eu primeiro escuto o que tem aqui para depois ouvir o que tem lá fora. Por isso, é importante respirar fundo e ter coragem de ir e lutar. Eu vou porque se eu não luto, eu não respiro, se eu não respiro, que sentido tem? Então eu preciso defender, eu preciso garantir, tanto a minha sobrevivência quanto a dos outros.

Pacs: Como você vê a arte? Como ela está em você?

Zica: sou uma criatura de profundezas e é difícil chegar lá. Mas é importante a gente caminhar primeiro para dentro, saber o que tem dentro e o que tem atrás. Eu mergulho muito nisso. A arte, de algum modo, nem é questão do eu, mas do outro, é quebrar o que, de forma violenta, é colocado. As barreiras. A arte serve como uma ponte entre a natureza dos outros, como um olhar diferente. Normalmente, a minha natureza não está com as melhores caras, mas a arte é essa forma de trazer a sensibilidade e a beleza desse caminho profundo que eu faço. Não gosto muito de falar sobre ele, mas é uma forma de mostrar.

Pacs: O que te adoece e o que te cura?

Zica: O que me adoece é a ignorância do homem. Isso me adoece e tenho dificuldade com isso. O homem é um detalhe tão mínimo na natureza, é uma dimensão, perdido em uma outra dimensão muito maior. A ignorância de achar que se sabe das coisas. A gente sabe o que nos é permitido saber e nada além disso. A ignorância do homem me adoece porque eu paro, olho, fico refletindo e penso: como pode uma criatura que não tem nada achar que sabe das coisas? Quando eu percebo isso, o que me cura é justamente saber que é possível sempre ver com mais que dois olhos, ver de outras formas, e isso me cura porque é entendermos que somos dimensões que não temos controle. Eu sou movida por essa coisa real de saber que não vale a pena se adoecer acreditando que eu detenho alguma coisa ou sei das coisas. Essa reflexão me melhora porque eu sei que eu posso ser muita coisa, mas eu não quero ser aquilo que acha que sabe, porque eu não sei de nada e também não quero saber.

Pacs: O que você pensa sobre o tempo? O seu tempo e o tempo da natureza…

Zica: Hoje é dia 21 de julho. Ontem foi 20. No lanche ontem foi servido suco de manga. Eu não entendi o porquê. As mangueiras já trocaram de folhagem pela terceira vez esse mês e tem umas que começaram a estourar as folhas novas, porque tem umas que ficam cor de rosa. Daqui a um tempo, elas vão estourar umas flores e depois umas mangas bem pequenininhas, os botões. Vão ficar o final de julho, agosto, setembro e outubro, quatro meses. Daqui a quatro meses, no começo de novembro, aparecem as primeiras mangas. No meio de novembro, vai ter uma quantidade maior. No mês de dezembro vai ter muita manga. Mas, curiosamente, foi servido suco de manga ontem. Eu não entendi. A gente não sabe de nada. Se nós não respeitamos um ciclo natural, a gente não respeita o que nós somos. Porque se eu conseguiria tomar um suco de manga ontem, então eu vou subir nessa mangueira e comer uma manga hoje. Mas não tem. Que manga misteriosa é essa? A natureza não funciona assim, ela tem ciclos e aqui não é o momento. O meu tempo é esse tempo de entender e respeitar isso. Eu não tomei suco de manga porque não é época de manga. Mas me pergunta se daqui a quatro meses eu não posso tomar? AÍ eu tomo. Porque essa natureza (a minha) sabe respeitar esse tempo. Ela não vai sentir vontade de se alimentar de manga porque terão outras coisas. Então, o meu tempo não é um tempo que fica preso porque a minha semana passa em meses. Em tempos difíceis em que tende a se pensar muitas coisas, o primeiro sentimento é de desespero. Se houvessem realmente motivos para estarmos desesperados, a gente não teria todas as soluções em volta. Só será realmente um momento de desespero quando não tiver mais nada. Enquanto houver, é importante a gente saber que é preciso se levantar, ficar de pé e se preparar, porque tem coisa muito maior para ser defendida.