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Fé, resistência e coletividade em contextos de megaprojetos

Em parceria com a campanha “Tire os fundamentalismos do caminho”, iniciativa que tem como objetivo alertar a sociedade sobre os avanços dos fundamentalismos no Brasil e o risco que representam à vida das mulheres, o 9º Ciclo de Debates trouxe o tema “Fundamentalismos religiosos em contextos de megaprojetos”. Essa foi mais uma iniciativa da campanha #MulheresTerritóriosdeLuta, que traz o caminho das lutas marcadas e vividas em realidades que exigem (re)existências.

No encontro virtual, abordamos questões como a forma que os fundamentalismos religiosos se expressam e afetam as vidas das mulheres e as suas práticas religiosas, além das suas estratégias para combatê-los. Cibele Kuss, Pastora Luterana do Rio Grande do Sul; Mãe Flávia, Babá de Umbanda do Rio de Janeiro; e Shirley Djurkunã, indígena Krenak de Minas Gerais, estiveram presentes e contaram um pouco das suas trajetórias de luta dentro desse contexto.

O debate sobre os fundamentalismos traz consigo a necessidade de discussão sobre todo o processo histórico de colonização nos territórios. Para Mãe Flávia, nessa conjuntura, é fundamental ainda a desconstrução da ideia de que o mundo existe há 2020 anos: “A partir do momento que eu opero uma logística existencial, eu não dou conta de localizar, por exemplo, tribos indígenas, ciganas, as comunidades hindus e os iorubás que existem há milhares e milhares de anos. Independentemente do que fizeram os traficantes, estupradores, eurocristãos nas invasões dos territórios, esses povos tinham uma organização sociopolítica”, defende. Segundo ela, no momento em que não se reconhece a territorialidade desses povos, inaugura-se o fundamentalismo.

Nesses processos de construção social por meio da colonização, os povos originários, principalmente indígenas, sofreram e ainda sofrem com as tentativas de negação das suas ancestralidades, como contou Shirley Krenak: “Esses processos vieram de uma forma massacrante para nós, povos indígenas do nosso país, chamado hoje de Brasil. Ao longo do processo dessa colonização, os povos indígenas sofreram muito com as questões das missões, que trouxeram outra visibilidade, de uma forma bruta e violenta para dentro das comunidades. E queriam fazer de tudo para que a gente passasse a acreditar no Deus que eles trouxeram de longe. Porque essa era uma forma de matar os povos indígenas, de nos dominar”.

Um dos pontos levantados durante o Ciclo foi como os fundamentalismos religiosos se relacionam com toda uma estratégia de oposicionismo e “diabolização” das diversidades, como apontou a Pastora Cibele: “A matriz religiosa fundamentalista faz alianças com fundamentalismos diferenciados no campo econômico, por isso nós temos essa expressão da ‘capetalização’ da vida, nas diversidades. É uma diabolização muito sustentada, na financeirização da vida, nessa força do pós capitalismo que a gente vive hoje”, explicou. Para ela, os fundamentalismos são a interseccionalidade da matriz religiosa e de um projeto neoliberal capitalista que tem uma “cara” branca e heteronormativa.

A questão da fé como “mercadoria” também foi abordada na fala de Shirley: “O ser humano está deixando de acreditar no grande mestre ‘lá de cima’ e está transformando tudo isso, toda essa forma de acreditar, em mercadoria. E é através dessa questão que se criam diversas vertentes ligada a fé, que é o que vem destruindo o ser humano e provocando brigas.” Para ela, essa forma de tratar a fé é utilizada, principalmente, visando a destruição dos verdadeiros donos da terra: os povos indígenas. “São os povos indígenas que lutam para que saberes do céu e da terra não sumam”, defendeu.

Essa questão de dominação das terras, trazida pela colonização, possui relação direta com o histórico de violações contra as mulheres na construção social, como explicou Mãe Flávia: “A figura feminina, ela foi em diversas tradições, utilizada para manter o equilíbrio, para ter menos mortes, menos desperdício e mais produtividade, uma vida mais saudável. Nessa invasão territorial eurocristã, a primeira coisa que ela inaugura é a desestruturação familiar, e inaugura a cultura de estupro, por que qual é a ferramenta mais imediata de epistemicídio, ou seja, de assassinato de um povo e de sua cultura? É tomar aquela mulher à força e engravidá-la compulsoriamente. Então, a cultura de estupro que nós vivenciamos hoje, ela foi inaugurada por esse processo, para atender o sistema ‘capetalista’ em expansão”.

De acordo com Cibele, no Brasil e na América Latina como um todo, é perceptível a forma como os fundamentalismos atuam por meio de uma base cristã religiosa que fortalece as alianças de oposição às mulheres, aos povos e comunidades tradicionais, pelo interesse nos territórios. “Nós sabemos o papel que as mulheres exercem nos territórios tradicionais aqui no Brasil. Tem toda uma caminhada que sustenta esse funcionamento dos fundamentalismos no campo do debate sobre gênero, direitos sexuais e reprodutivos. Temos acompanhado o quanto o fundamentalismo religioso de matriz cristã faz alianças com diferentes bancadas ultraconservadoras e tocam os direitos que entendem como importantes, da família heteronormativa, da família branca, o controle dos corpos, da sexualidade das pessoas e da educação”, destacou.

Para Shirley, toda a conjuntura atual, de destruição da natureza e violência entre os povos tem relação com os fundamentalismos: “Será que todo mundo não pode conviver na mesma terra e no mesmo lugar, sem querer tirar ou estuprar a religião do outro? Será que a gente não consegue viver numa terra tranquila, sem discriminar o outro porque ele é negro, ou por que é indígena?”, questionou. Diante disso, ela contou como o povo Krenak tem resistido pela força da natureza e do amor: “Nós, povos indígenas, acreditamos na nossa tradição, nos nossos costumes, na nossa língua, no nosso jeito de falar com o grande mestre. Nós somos forjados pela força da natureza e é isso que nos deixa de pé fortes, enquanto Krenak”, concluiu.

Assista o vídeo na íntegra: