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Isolamento social intensifica sobrecarga de trabalho reprodutivo no cotidiano das mulheres

Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs)

Os impactos dos megaprojetos na vida das mulheres a partir do aumento do trabalho reprodutivo e do poder patriarcal nos territórios (o que chamamos de repatriarcalização dos corpos-territórios) são ainda mais intensificados durante a pandemia. Por esse motivo, esse foi o tema do segundo Ciclo de Debates #MulheresTerritóriosdeLuta, uma iniciativa da campanha realizada pelo Instituto Pacs, que traz o caminho das lutas marcadas e vividas em realidades que exigem (re)existências.

Campanha Mulheres Territórios de Luta é uma dentre tantas expressões de uma história viva e coletiva que está presente em diversas mulheres. São corpos que, submersos em sentimentos, reflexões e dores, se veem como parte de lutas e conflitos. São mulheres que vivem situações que parecem bem maiores que elas mesmas, mas em realidade são a continuação e o eco de seus corpos-territórios. São histórias, reflexões, sentimentos, expropriações e reapropriações, artes, sonhos, encontros, coletividades, natureza, violências, lutos, indignação, encantamentos e muitas formas de viver e (re)existir.

Considerando esse contexto, questionamentos sobre a forma como o patriarcado forja o corpo das mulheres e a divisão sexual do trabalho foram feitos durante o encontro virtual, a partir da perspectiva das comunidades tradicionais, periféricas e das mulheres negras e indígenas. Angela Cuenca, do Colectivo Casa e Red Latinoamericana de Mujeres Defensoras de Derechos Sociales y Ambientales, falou sobre sua vivência e seu trabalho político na Bolívia onde ocorre forte interferência de atividade mineradora e, consequentemente, seus impactos socioambientais e coloniais: “O patriarcado, esse sistema que gera opressão e exploração, é construído historicamente na Bolívia sobre o corpo das mulheres”.

O país, que tem a atividade mineradora desde a época colonial como base de acumulação capitalista, também possui em seu histórico múltiplas violências. “Mulheres indígenas foram despojadas da força que representavam em seus povos, ao serem reduzidas ao trabalho doméstico. E também ‘coisificadas’ para satisfazer os espanhóis durante o período de colonização”, explicou Angela. Essa relação de domínio, baseado em uma estrutura racista e patriarcal, ainda é muito presente no contexto atual e afeta diretamente a vida das mulheres na América Latina.

Outra questão abordada por Angela no Ciclo foram os impactos da cadeia mineradora na Bolívia. São mais de 17 milhões de toneladas de resíduos mineiros espalhados em Oruro, a cidade em que vive, como também em outras comunidades. “Há rios mortos devido à alta contaminação mineira”. Há ainda a expropriação da água pelas empresas transnacionais, que provoca um grave desabastecimento das comunidades de seus entornos e um impacto enorme nas formas de viver tradicionais desses locais. É o caso de Tatoral, que possui apenas 1 hora de água na semana, enquanto na mina há água abundante.

Os megaprojetos na região impactam diretamente a vida das mulheres, não somente com os abusos sexuais praticados pelos trabalhadores que chegam junto com essas empresas, mas também na própria rotina familiar delas. Este é um exemplo da repatriarcalização citada, assim como a falta de acesso aos recursos naturais e a invisibilidade das defensoras. A questão da dificuldade do acesso à água, por exemplo, causa uma sobrecarga de trabalho doméstico para as mulheres, que precisam do elemento para consumo ou produção de alimentos. Com a pandemia do Covid-19, esses impactos são amplificados. “Quão fácil é combater o vírus lavando as mãos se não há água para consumir? Companheiras estão, nesse momento, tendo que acordar cedo, sair às escondidas, fugir de militares, para fazer a colheita”, questionou Angela.

Mesmo na conjuntura atual, em que iniciativas coletivas têm sido ainda mais fundamentais para a região, Angela apontou uma invisibilização da resistência das mulheres pela defesa do direito à terra, mesmo em papel de liderança nos movimentos. “As mulheres são desprestigiadas, deslegitimadas e criminalizadas. Elas alertam e identificam os danos à saúde, à alimentação, à produção, na cultura, na família e nos territórios. Sensibilizam a família e a comunidade, tecendo posições em defesa da vida, pensando no futuro de seus filhos. Mas ao fim, aparecem os homens à frente das negociações”, relata. Na região, indígenas, originárias e campesinas compõem a Red Nacional de Mujeres Defensoras de la Madre Tierra, que lutam pelo exercício dos direitos das mulheres e contra a violência ambiental.

Assim como Angela, Rosimere Nery, que faz parte da Fase-PE e do Fórum de Mulheres de Pernambuco, também falou sobre os impactos dos megaprojetos, desde a perspectiva da lógica patriarcal, nas formas de vida das mulheres da região do Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros — SUAPE: “Uma centena de pessoas chegou na cidade junto com as obras e isso afetou diretamente a vida da comunidade. As mulheres ficaram inseguras, com medo de passear nas ruas. Muitas meninas foram enganadas por esses homens, porque eles iniciavam uma relação e depois sumiam. Isso trouxe para as mulheres muito sofrimento e dor”, desabafou. O complexo fica localizado nos municípios de Cabo de Santo Agostinho e de Ipojuca, no estado de Pernambuco, e ocupa atualmente uma região de aproximadamente 13.500 hectares.

Durante sua fala, Mere destacou ainda como o racismo e o patriarcado afetam a vida de mulheres negras e como a divisão sexual do trabalho agrava ainda mais essas questões: “Historicamente nos foi dito que nós devemos ser submissas ao homem e isso foi colocado na construção da nossa sociedade, assim como o racismo. As mulheres negras, que foram fundamentais na construção desse país, são até hoje invisibilizadas e negligenciadas. Essas mulheres não estão ocupando os cargos de liderança”, explicou.

No contexto da pandemia, o caso de Miguel Otávio foi citado por Rosimere. O menino de 5 anos morreu no dia 2 de junho após cair de uma altura de 35 metros em Recife, enquanto a mãe, mulher, negra e empregada doméstica passeava com o animal de estimação dos patrões. A criança, que estava sob responsabilidade da patroa, foi colocada sozinha no elevador do prédio pela mulher. “Por que ele caiu do prédio? Não se deixa uma criança sozinha no elevador. Por que a mãe estava trabalhando? Ela não deveria estar, porque foi decretada a quarentena aqui em Pernambuco. Mas ela teve que ir e levar o filho dela”, expôs Mere.

No Brasil, segundo dados do IBGE de 2018, são 6,24 milhões de trabalhadores domésticos, dos quais 92% são mulheres. “É a maior taxa do mundo, composta por mulheres negras e de baixa escolaridade. Eu fico pensando que agora, durante a quarentena, essas pessoas ficam falando que as desigualdades aumentaram, mas isso sempre aconteceu”, destacou Rosimere. Ela citou ainda o caso da primeira vítima de Covid-19 do Rio de Janeiro, empregada doméstica, que pegou o vírus da patroa que havia retornado recentemente da Itália e faleceu pouco tempo após a contaminação.

O trabalho doméstico como fonte de renda também foi abordado por Ana Santos, educadora popular do Centro de Integração na Serra da Misericórdia e da Rede Carioca de Agricultura Urbana. Ela, que é moradora do Complexo da Penha, favela da zona norte do Rio de Janeiro, destacou como a atividade, muitas vezes praticada informalmente, ainda é naturalizada e colocada como única alternativa para mulheres negras e periféricas: “É um trabalho muito honesto ser empregada doméstica, mas é só isso que nos resta?”, questionou.

O Complexo de favelas da Penha é reconhecido pelo Instituto Pereira Passos por 11 favelas, apesar da região compreender mais territórios. O local, que sofre a negligência por parte das autoridades até mesmo no reconhecimento de sua extensão, vive o impacto da militarização diariamente, do extrativismo em pequena escala e da vivência em uma cidade-mercadoria como o Rio de Janeiro. Ana destacou como tem sido desafiador, durante a atual conjuntura, lidar com esses impactos: “A violência do estado ela não é só o fuzil armado, mas é todas essas ausências negligenciadas e afirmadas em nossos corpos. Você imagina, na pandemia, como a situação aqui não está”.

Outro ponto abordado por Ana durante o encontro foi a falta de visibilidade sobre o trabalho reprodutivo na vida das mulheres: “Desde sempre essa é a nossa realidade. Só agora se deram conta que a gente lava, passa, cozinha e que com a pandemia a gente ficou sobrecarregada. O papel dessa mulher aqui da favela, da Baixada Fluminense, onde é meu berço, é de luta, de resistência e de cuidado da família. É ela quem põe o pão dentro de casa.”

Apesar de todas as consequências trazidas pela conjuntura, Ana contou que a pandemia possibilitou uma maior articulação com as mulheres que vivem nos locais onde atua: “É por meio das crianças, da cozinha e da pandemia que eu to conseguindo montar um exército. São as mulheres que hoje organizam todas as cestas da solidariedade e que também pensam na água da sua comunidade. Nós mulheres conseguimos ocupar esse espaço”, explicou.

Ana encerrou a sua fala citando como a união de mulheres, como as que compõem o GT Mulheres da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ), do qual também faz parte, tem sido fundamental para revolucionar durante o momento atual: “A gente, por meio das nossas lutas, de todo o movimento de mulheres, vem fortalecer outras mulheres com um kit de cuidados porque nós estamos preocupadas com nós. Isso aqui é poder, e é a partir desse poder que a gente vai revolucionar dentro da favela. É a partir desse poder, que está nas nossas mãos, com nossos saberes, que a gente se une, luta e transforma”, concluiu.

Assista o vídeo na íntegra: