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Lorena Cabnal e a visão das sanadoras sobre a pandemia do COVID-19: como o sistema patriarcal tem agido para calar as mulheres na Guatemala
*O texto foi escrito com base nas falas de Lorena Cabnal durante o 8º Ciclo de Debates #MulheresTerritóriosdeLuta, cujo tema foi “Mulheres indígenas e os danos da pandemia e dos megaprojetos”. A live está disponível na íntegra no canal do Instituto Pacs no Youtube. Lorena é integrante da Red de Sanadoras Ancestrales del Feminismo Comunitario Territorial, desde Iximulew-Guatemala.
Através do fogo aceso de uma vela de cor vermelha, do sangue que corre pelo seu corpo, que corre pelos corpos de milhares e milhares de mulheres neste continente e no mundo, saúdo ao espírito de nossas ancestrais, de territórios que também caminham e saúdo também a memória de cada povo ancestral que se convoca nesses tempos. Saúdo as irmãs que colocam o corpo na linha de frente do ataque, obrigada por suas contribuições para tecer a Rede da Vida. Também saúdo aquelas que, hoje, estão vivendo os efeitos pandêmicos, sofrendo, que estão de luto, com medo e preocupações que têm afetado os seus corpos. Saúdo a sabedoria dos povos para curar-nos, para levantar-nos, e também saúdo a força e a sabedoria das médicas e médicos indígenas. Saúdo a memória das plantas, das ervas, das águas, das pedras, dos rios, dos caminhos e da lua nessa fase de lua cheia, com essa energia que nos acompanha nesse calendário. Saúdo a memória das mulheres que estamos em consciência fazendo luta pela defesa da vida.
Eu venho da história das mulheres que tecem algo que hoje se conhece como território corpo-terra. Se você já ouviu isso por aí, se leu em um livro ou então ouviu de uma teórica, o território corpo-terra veio da luta organizada contra a mineração e contra as violências que as mulheres indígenas vivenciam sem ter passado pela academia, sem ter passado por outras formas complexas para trazer a abordagem na linguagem Maya Q´eqchi´ y Xinka.
Para nós, neste momento, estamos falando que a pandemia pelo Covid-19 é interpretada como um efeito. Não surge por surgir, trata-se de um efeito do neoliberalismo, que vem do capitalismo e do sistema patriarcal. Esse sistema arrasta a colonialidade, as colonizações, o racismo, os roubos, os genocídios, a violência sexual. E o que temos agora é um neoliberalismo pandêmico que atinge o território terra e o território corpo.
Como estamos enfrentando esse efeito pandêmico? Olha, não é coincidência que nós, mulheres, tenhamos lutado tanto para sair de espaços privados. Lutar nas ruas, denunciar toda impunidade, corrupção, feminicídios, violência sexual. E, agora, vemos como se legitimou o “fique em casa” e isso é muito forte para as mulheres que vêm fazendo defesa de território, porque esse “fique em casa” está regulamentado pela lei.
A Guatemala está em estado de sítio desde março, que se impõe agora apenas à noite, mas só recentemente surgiu durante os dias. Numa memória recente na Guatemala, de 36 anos de guerra contra insurgentes, contra a mineração, as hidrelétricas, as monoculturas estendidas, contra as grandes petrolíferas, se impõe estado de sítio para criminalizar e judicializar a luta e resistência dos povos ancestrais na Guatemala.
Agora, temos outra forma legitimada de estado de sítio no âmbito da pandemia. Nós, mulheres, comunidades, irmãs e irmãos que vivemos de risco político dizemos que estamos em duplo confinamento. Isso, porque já sofremos ataques e ameaças e, portanto, nossa vida deixou de ser comum, de mover-nos com toda a liberdade, já que temos ordens de captura, prisões, ameaças de morte e invasões. Agora, com a pandemia, este risco político é duplicado.
A forma como isso atinge os corpos das mulheres, defensoras de territórios mais empobrecidas, é um efeito desse neoliberalismo pandêmico. Aumentaram os casos de criminalização e acusação de mulheres, e de colegas e irmãos também. Mas, quero enfatizar as mulheres, aumentaram as situações complexas de perseguição política de mulheres nas comunidades. Vocês sabem por quê? Porque todos os serviços essenciais disseram que não iam parar, e veja que a mineração na Guatemala, por exemplo, não parou. Em todos esses meses de pandemia, a mineração continuou operando da mesma forma que as hidrelétricas, assim como as petroleiras e como a monocultura do azeite de dendê.
Então, o que aconteceu durante a pandemia foram invasões, assassinatos contra irmãos e irmãs, companheiros e companheiras dos setores e uma série de situações complexas de risco político de irmãs e irmãos aumentaram. Portanto, para nós, neste tempo de pandemia, há uma reconfiguração do sistema patriarcal neoliberal pandêmico e há um seguimento de violências sobre os corpos e sobre a vida. E isso é uma das estratégias de governos impunes e corruptos, porque eles estabelecem medidas emergenciais de calamidade nacional e, com isso, todas as travas são removidas para concessão. A impunidade e a corrupção aumentam e você percebe que a Guatemala está extremamente endividada. Então, como isso afeta nossos corpos? Acho que afeta todas as dimensões do nosso ser. Houve uma irresponsabilidade grave que atinge a harmonização da Rede da Vida e todas as mega indústrias, o capitalismo, a poluição desencadearam, assim, um comportamento viral.
Portanto, não parcializemos os efeitos da pandemia, mas também lembremos que a pandemia é um efeito encadeado. É um efeito que vem concatenado de várias opressões, mas bela é a sabedoria dos guerreiros das avós dos ancestrais. Para que, na sua pluralidade de saberes, também neste momento, enfrentemos com dignidade e sabedoria este vírus junto com todas as outras lutas que estamos fazendo em defesa da vida.
Eu gosto de algo que abordaram algumas irmãs e irmãos do Sul, em uma vez que dialoguei com Kichuas, onde disseram que nós mudamos isso de “fique em casa” por “fique em seu chakra”. É bonito também ver como isso te leva a uma relação de vida com o despertar. Acredito que algo que foi importante, porque foi sustentador emocional e territorialmente, nesses momentos para nós, foi fortalecer o cultivo das plantas, das ervas que estão nos acompanhando nos processos de cura. Acorpando de meninas em casa, com as diferentes irmãs, para que elas desenvolvam, desde seus conhecimentos em sociedade, desde a juventude, esses espaços para fortalecer a sabedoria sanadora em outras gerações. E nos aproximamos de avós e avôs, anciãos, para que nos contem quais coisas fizeram durante as pestes em que havia muita fome, já que sua memória e conhecimentos são vitais nesses tempos.
Para nós, foi impressionante ver como essa luta tem despertado as formas de imunologia ancestral, a partir da sabedoria milenar em medicina dos povos ancestrais. Nós dissemos para nós mesmas sobre os impressionantes casos que acompanhamos, não só na Guatemala, mas em diferentes territórios e comunidades, diferentes países. Foi impressionante para nós a carga disso e dissemos que, no meio de tudo, não podemos esquecer a curandeira e a cura. É ali onde convidamos as irmãs, companheiras, para que não se esqueçam também que a memória sanadora está mais perto do que imaginamos. Nossas mães, avós, anciães e vizinhas são mulheres que também têm sabedoria e resistiram e viveram no urbano, como também na comunidade. Então, convidamos para que se aproximem de sua mãe, avó, tia, com as guias espirituais ou curandeiras, para que se acorpem também, porque hoje isso é vital.
Que a força e a sabedoria das grandes guerreiras sigam caminhando, as guarde e as projeta. E a sabedoria das grandes mulheres que contribuíram aos povos e aos diferentes territórios, seja o urbano, seja na cidade, seja no campo, seja nas selvas, seja onde estejamos. Que sigamos convocando o tecido da Rede da Vida, porque somos parte da rede de sanadoras ancestrais para seguir acorpando e levantando o corpo e o espírito nesses tempos de pandemia.