Materiais
O aquilombamento como resposta histórica às violações vividas na Zona Oeste do Rio de Janeiro
*Matéria fruto de entrevista com Silvia Baptista, lutadora e liderança da Zona Oeste, realizada no escopo da #CampanhaMulheresTerritóriosdeLuta, adentrando a região pelo olhar e corpo de luta de Silvia.
A Zona Oeste do Rio de Janeiro, região que abrange mais de 40 bairros da cidade, historicamente se desenvolveu por meio de um sistema produtivo escravocrata, com a ocupação de seus territórios por grandes fazendas e unidades produtivas no século XVII e que hoje mantém os legados deixados por essa época. É nessa região que vive Silvia Baptista, mulher negra, de origem quilombola, pedagoga e doutoranda em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ. Silvia também faz parte da Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste e da Teia de Solidariedade da Zona Oeste.
Na época do regime da escravidão, o Maciço da Pedra Branca se tornou local de refúgio e deixou como legado a existência de três quilombos na região: Cafundá Astrogilda, de onde vem a família de Silvia, Quilombo do Camorim e Quilombo Dona Bilinha. Além disso, outra herança também deixada por esse período é a própria agricultura tradicional e camponesa da Zona Oeste, e a agricultura urbana que também surgiu por meio de correntes migratórias internas no país no século passado. Silvia explica que, a partir do modelo de cidade que foi sendo implementado também no século XX, se iniciaram as lutas pela terra como produção agrícola, já que o sistema de plantificação urbana, com base no mercado imobiliário, foi banindo posseiros, agricultores e agricultoras, além de provocar novos espaços de segregação, mantidos até hoje. “Então, você tem um condomínio aqui, ao lado de uma favela; espaços ameaçados e pontuado aqui e ali com espaços de agricultura”, explicou ela.
Atualmente, a Zona Oeste do Rio é uma das regiões mais impactadas pela presença de megaprojetos e, há alguns anos, também foi alvo da realização de megaeventos, como aponta Silvia: “Eu vou primeiro falar da grande mídia, porque temos aqui duas grandes televisões numa única avenida, com uma distância de menos de 25 km uma da outra”. As emissoras citadas por ela são a Rede Globo, que ocupa uma área total área total de 1,73 milhão de metros quadrados, entre os bairros de Jacarepaguá e Curicica; e a Rede Record, que ocupa uma área estimada em 41 mil metros quadrados, localizada em Vargem Grande. Junto com a grande mídia, há ainda a indústria imobiliária internacional, com a construção de grandes condomínios, como é o caso do Ilha Pura.
Silvia conta que há uma grande relação entre a atuação da indústria imobiliária na região com a realização de megaeventos. O local onde se encontra o Ilha Pura, por exemplo, foi a primeira sede do Rock in Rio em 1985: “ Era um espaço muito alagado, tiveram que aterrar, as pessoas pisotearam, lembro que nesse primeiro Rock In Rio tinha muita lama, e a partir daí virou um terreno viável para a indústria imobiliária”, explicou. Essa mesma estratégia de megaeventos somados à indústria imobiliária também foi utilizada na realização da Jornada Mundial da Juventude, evento católico em 2013 que teria como sede um grande aterro em Guaratiba, mas que teve seu local alterado após forte chuva que atingiu o Rio de Janeiro.
Outros exemplos de megaeventos que também geraram grandes impactos urbanos na região foram os Jogos Pan-Americanos, as Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol. “A indústria da construção civil foi extremamente beneficiada, alguns viadutos, pontes, estradas… Você vê naturalmente o excesso do concreto, o excesso de intervenção organizada pelo grande capital”, contou. De acordo com Silvia, em Curicica há um viaduto que provocou uma divisão profunda no bairro, construído para suprir os interesses da realização das Olimpíadas na cidade. “Os megaeventos e a indústria imobiliária causaram ameaças de remoção à moradia e às experiências de agricultura urbana, e muitas dessas ameaças se consolidaram, se cumpriram. Outras ameaças ainda pairam no ar, tirando o sono das mulheres e suas famílias”, pontua ela.
Os moradores da Zona Oeste enfrentam ainda a presença de megaprojetos como a Ternium (antiga TKSA), o Porto de Sepetiba e o Arco Metropolitano, todos relacionados com a visão do “grande” e de capital internacional e responsáveis também pelos impactos ambientais e sociais na região. “As pessoas atingidas são todas aquelas cujo modo de reprodução de sua própria vida não pactua, não corresponde aos ideais do capital. E aí são todos os pobres, pretos, periféricos, a população quilombola, os caiçaras, os pescadores, as pescadoras, as marisqueiras, os agricultores e as agricultoras, e sobretudo as mulheres, e aí todos esses corpos têm uma espacialidade aqui na Zona Oeste, e seus locais de assentamentos, de resistência, são todos ameaçados”, explica.
De acordo com Silvia, a renda da terra passou a beneficiar alguns, provocando uma extrema concentração: “Os impostos se tornaram proibitivos, causando uma exclusão social dos mais pobres, um ambiente profundamente transtornado, numa região que poderia ser bastante equilibrada e com uma distribuição dos bens comuns no local, como por exemplo, a água”. Segundo ela, no limite da Zona Oeste com a Baixada Fluminense, mais conhecida como “borda Oeste”, os moradores enfrentam ainda a distância com o mercado de trabalho, o que resultou no desenvolvimento de bolsões de extrema pobreza, formação de novos despossuídos pela impossibilidade da pesca e da agricultura, antes tradicional, além dos problemas de saúde em função da poluição.
Nesse processo de exclusão social, Silvia afirma que cinco ou seis famílias que concentram a mídia no país, sendo duas instaladas na região da Zona Oeste, como apontado anteriormente, tiveram ou ainda possuem grande envolvimento com os acontecimentos na região: “Uma é a família Marinho, a quem eu associo à família Medina, com o Rock in Rio já descrito. A família ampliada do bispo Macedo, com os evangélicos, a Igreja Universal; e a Odebrecht, que seria dona de uma grande porção da parte oeste da Zona Oeste”. No caso da última, Silvia explica que as áreas de Vargem Grande, parte do Recreio, Piabas e Camorim estavam destinadas à Odebrecht numa operação urbana consorciada, definida por um dos projetos de estruturação proposto pela Prefeitura do Rio: “Nós nos insurgimos contra isso, criamos um plano popular das Vargens, participamos das audiências públicas, fizemos manifestações de repúdio a essa forma de privatização do território, mas devo falar que tem uma ligação estreita com a Lava Jato e aí ainda há muito o que descobrir”.
Dentre as pessoas envolvidas em todo o processo de interferência na vida das populações da região, Silvia destaca ainda Carlos Carvalho, um dos donos da Ilha Pura e de outros milhões de metros quadrados de terras na Barra da Tijuca: “Tem uma entrevista onde ele diz que ‘jamais poderia morar perto de um indígena, que indígena fede’. E é um clássico aquela entrevista, desnudando todo o processo racista dessa indústria imobiliária que quer tirar as pessoas de seus assentamentos tradicionais. Outros atores são invisíveis, só aparecendo como lugares tenentes, entre eles áreas militares, que vicejam aqui nessa região”.
Para ela, a forma de atuação e relação entre essas pessoas, “formula toda uma narrativa e disseminação de corpos e estruturas de repressão, que impedem a livre expressão, o direito de ir e vir e da organização, abafando e ameaçando todas as possíveis insurreições e criatividades”. E, juntamente, o mercado de terras vem criando, além da exclusão, a produção de itens primários (como é o caso da siderurgia) que demandam uma estrutura paramilitar que seja capaz de manter toda a população em silêncio.
Nesse contexto de forte interferência dos “mega” nos territórios, Silvia aponta ainda como as mulheres sentem de forma diferenciada os impactos em suas vidas e corpos: “As mulheres estão mais vulneráveis ao zoneamento urbano que produz essa segregação espacial, que impossibilita o exercício dos modos de vida que têm normalmente, historicamente, um modo de vida diferente dos homens”. Sendo assim, apesar da possibilidade de alguns poucos homens serem beneficiados por esse tipo de zoneamento urbano, as mulheres vivem uma realidade completamente diferente, como aponta ela: “As moradias se tornam insalubres, você vê esse distanciamento no mercado de trabalho, que de certa forma impossibilita ainda mais que os pais ajudem as mulheres a cuidar dos seus filhos. Você tem um maior número de ameaças, de violência, violência sexual e doméstica”.
Apesar do cuidado territorial demandar mais esforços para as mulheres, diante desse emaranhado de ameaças pelos megaprojetos, Silvia acredita que “a opressão é de tal monta, se torna limítrofe da insurgência e da possibilidade do revide”. Assim, na maioria das vezes, são as mulheres que se colocam à frente das lideranças contra esse conjunto de opressão e do choque do capital sobre a cidade: “A gente tem uma capacidade organizativa, uma capacidade de estratégias empáticas que vão fazer a transformação no mundo”, defende ela.
Quilombo rede hoje: a Teia de Solidariedade da Zona Oeste
Mesmo diante de todos os desafios existentes no seu território e na luta diária contra as violações de direitos provadas pela atuação dos megaprojetos e da indústria imobiliária, Silvia reconhece na união de seu povo a importância do resgate ancestral e, por meio da Teia de Solidariedade da Zona Oeste, tem compartilhado com outras companheiras a luta contra as desigualdades e contra a pandemia do COVID-19. É por meio desse resgate das suas ancestralidades e dos aquilombamentos que, mesmo realizando reuniões online nesse momento de isolamento social, a Teia tem concretizado ações e aprofundado relações.
A Teia da Solidariedade é gestada e gerida por mulheres pretas e periféricas, que visam diminuir a vulnerabilidade das famílias impactadas pela pandemia. O trabalho é realizado por meio da ação emergencial em saúde, articulada à luta pela assistência social, a moradia popular e a soberania alimentar como direitos. “É como se fosse possível a gente reconstituir um Quilombo rede né, um Quilombo que também dialoga com o tema da autogestão em rede, no sentido também de nos defendermos, não só da pandemia, mas principalmente da fome, e reconstruir uma outra economia que bebe dessa nossa tradição de economia solidária, feminista e popular”, explica.
A entrevista que deu origem a matéria foi realizada por Marina Praça, coordenadora e educadora popular, e Yasmin Bitencourt, pesquisadora e educadora popular, ambas do Instituto Pacs. O texto foi escrito por Karoline Kina.