Materiais
Rio de Janeiro: História de ocupação, impactos dos megaprojetos e resistência pelo olhar de Sandra Quintela
*Matéria fruto de entrevista com Sandra Quintela, economista, educadora popular, integrante da Coordenação América Latina e Caribe da Rede Jubileu Sul e vice-presidenta do Instituto Pacs. O bate-papo foi realizado por Ana Luisa Queiroz e Yasmin Bitencourt, pesquisadoras e educadoras popular do Instituto Pacs, no escopo da #CampanhaMulheresTerritóriosdeLuta. O texto foi escrito por Karoline Kina.
Na história de desenvolvimento do Rio de Janeiro, marcada pela ocupação de territórios, a região da Zona Oeste se destaca, principalmente por ser cobiçada por suas grandes riquezas naturais e humanas. Atualmente, o local abriga os bairros mais populosos da cidade e os menores indicadores de desenvolvimento humano, é o território da maior parte da população negra, de pescadores/as tradicionais e marisqueiras, grupos esses que são diretamente impactados pela atuação dos megaprojetos e megaeventos na região em suas condições de vida.
Em dezembro de 2018, O Instituto Pacs lançou o livro “Vidas Atingidas — histórias coletivas de luta na Baía de Sepetiba”, que traz relatos de luta e resistência nos territórios da Zona Oeste, expondo as violações de direitos e os impactos socioambientais causados pela presença de portos, siderúrgicas, empresas de grande porte no entorno. Em 2016, a publicação “Atingidas — História de vida de mulheres na cidade olímpica” trouxe os impactos de outro tipo de megaempreendimento, os megaeventos, que possuíam também a região como palco. Apesar das consequências comprovadas, as vidas atingidas lidam com a invisibilidade dos impactos cotidianos e com a apropriação dos recursos naturais, que interrompem suas rotinas e modos de produção de viver, como explica Sandra Quintela: “São essas pessoas anônimas que, para nós, fazem o milagre da vida acontecer no seu dia a dia, pescando, apanhando mariscos, sendo jovem, convivendo com a contradição de viver em um bairro que não possui políticas públicas de ensino e educação. Pessoas que se deslocam para grandes distâncias em busca de acesso a direitos básicos. Mulheres que fazem projetos de cartografia social ou que se lançam sobre seus territórios para compreender e resistir a esses processos de violações de direitos”.
Para Sandra, a cidade do Rio de Janeiro tem se afundado no “mantra” dos grandes investimentos, nacionais e estrangeiros, que na realidade não trouxeram e continuam não trazendo o tal “desenvolvimento”: “A gente tem aqui, a Companhia Siderúrgica do Atlância -TKCSA (atual Ternium Brasil), que na época era o maior empreendimento alemão fora da Alemanha, a maior siderúrgica do Brasil. A gente tem o COMPERJ, que era o maio complexo petroquímico. A gente tem no Rio de Janeiro uma das maiores feiras de petróleo offshore do mundo. Temos uma das maiores produções de petróleo do Brasil, e é aqui no Rio de Janeiro. Há uma série de estatais importantes, que não propiciaram desenvolvimento integral e orgânico, nem do estado, nem da cidade”.
Não apenas a Zona Oeste, como toda a cidade do Rio de Janeiro tem sido frequentemente transformada nos últimos anos, principalmente pela reconfiguração urbana através de mega-obras, como destaca Sandra: “Tanto de transporte — no caso o BRT, que foi uma obra que os movimentos criticaram muito na época, porque não dá conta dos desafios de uma cidade como o Rio de Janeiro — como na área da cultura — Museu do Amanhã e outros — também criticados na época, por conta de que ali era uma região onde se deu fortemente todo o processo de escravidão e recebimento de trabalhadores escravizados. Uma região histórica, que deveria trabalhar a memória, se apaga a memória e se projeta o amanhã?”, questiona ela. Sandra também pontua o processo de privatização na cidade, desde o saneamento básico na Zona Oeste, até a privatização de uma região inteira, na área central e portuária da cidade, conhecido agora como Porto Maravilha. Todo esse contexto traz ainda a questão das remoções, da gentrificação e do encarecimento da cidade, ocasionando a expulsão das populações mais pobres dos centros, deixando um legado de cidade endividada, controlada pelo capital e militarizada.
Nesse contexto de militarização da cidade, Sandra destaca ainda os patrocínios de entidades patrimoniais como as Operações Segurança Presente (Lapa Presente, Aterro Presente, …): “Na medida que você investe em segurança privada, de alguma maneira você está investindo em milícias, porque a milícia ela se fortalece com a segurança privada. É a segurança privada de ruas nas periferias, dos negócios, etc. Então, obviamente, essas entidades empresariais que financiam esse policiamento privado, estão investindo também num modelo de segurança, que não é mais a pública. É a privada. E a segurança privada responde a quem? Aos interesses privados”.
Mulheres, violações e resistência
Sobre os impactos de todos esses processos, para Sandra, não existe uma forma de se medir, mas é possível notar os aumentos nos números de pessoas com depressão, outros problemas de saúde, mortes e perdas de vínculos comunitários: “Há a perda dos lugares de referência, a perda da qualidade de vida em si. Porque a pessoa que vive em um lugar e é removida, ela tem um dano para vida inteira. Não é só para aquele período, aquele momento”. Dos grupos mais impactados, considerando o contexto de sociedade racista, patrimonialista e misógina, ela destaca as mulheres, principalmente mulheres negras: “Quando eu digo que o legado para a cidade foi a militarização e a dívida, obviamente, isso cai principalmente sobre as costas das mulheres. Na minha opinião, as mulheres são as mais impactadas nesse processo de gentrificação, principalmente as mulheres negras”.
Apesar disso, de acordo com ela, as resistências seguem lutando contra os violadores e violações: “As resistências foram múltiplas. A Vila Autódromo, por exemplo, com o seu Museu das Remoções, é um símbolo bastante relevante desse processo de resistência, e tantas outras comunidades que continuam resistindo. Eu acho que o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas também foi um espaço importantíssimo, nessas resistências que já vinham lá no Pan Americano”. Sobre as mulheres, ela relembra momentos como a Primavera Feminista, em 2015, e o revigoramento do movimento feminista culminado pelo “Ele não”, nas manifestações em 2018: “Hoje, a data de 8 de março voltou a ter muita força. Ao mesmo tempo, a resposta do sistema também é muito forte. O feminicídio aumenta. Acho que é esse fluxo, refluxo que a gente está trabalhando e que a gente precisa entender a dinâmica da história. A história não é estática, a história vai e vem, a história avança e retrocede, mas não está parada”, explica.
Dessa forma, tem sido observado o aumento no número de assassinatos, estupros e violências de todas as formas contra as mulheres. Sandra reafirma a ideia do corpo da mulher como um território de guerra: “As guerras, as cidades eram invadidas por tropas estrangeiras ou tropas inimigas e o que, muitas vezes, ocorria primeiro eram as violações dos corpos das mulheres. O estupro em massa. Então, é essa expressão do corpo das mulheres como um território em disputa nas guerras, nesse processo que a gente vive. Obviamente, nós não estamos em guerra, mas estamos vivendo aqui no Rio um genocídio.” Segundo ela, no país, há uma violência sistêmica contra as populações negras e contra os grupos mais empobrecidos, que são negros. Os dados evidenciam e expressam a maneira violenta e estruturante da violência contra as mulheres.
“Eu não sei como vai ser nos próximos 10 anos, se continuar essa exploração máxima. Vai ter um processo de adoecimento muito forte e com um sistema de saúde totalmente colapsando. Não vejo futuro muito bom. A não ser que a gente se mobilize e lute para mudar tudo isso. As cidades são reflexos desse processo de sugamento, de força viva, do trabalho, da força viva da natureza… E as cidades refletem de maneira muito evidente essas desigualdades. O Rio de Janeiro é um retrato disso”, conclui Sandra.