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Entrevistas

#MulheresTerritóriosdeLuta: Agricultura urbana, feminismo e resistência na Favela da Penha e Serra da Misericórdia

Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), publicado em 12/11/2020

Em mais um material da série de entrevistas com lutadoras de territórios da América Latina na campanha #MulheresTerritóriosdeLuta, compartilhamos hoje um bate-papo com Ana Santos, integrante do Centro de Educação Multicultural (CEM) e da Rede Carioca de Agricultura Urbana. A entrevista foi realizada por Marina Praça, coordenadora e educadora popular, e Ana Luisa Queiroz, pesquisadora e educadora popular, ambas do Instituto Pacs.

Foto: Acervo pessoal

PACS: O que é luta para você?

Ana: Bem, eu, enquanto mulher preta, acho que eu já nasço lutando, né? Primeiro, lutar para resistir, para viver… e essa luta, para mim, ela começou pela educação. Com 9 anos de idade comecei a ensinar minhas irmãs, minha avó… então, eu entendi essa luta como a leitura, porque eu via a leitura como abrir os olhos para o mundo. Eu acreditava que se a gente sabe ler, a gente sabe escolher. E, depois, a luta de manter minha família. Meu pai foi assassinado, e aí, mais uma vez, eu e minha mãe tivemos que lutar para manter viva a nossa família. Então, primeiro uma luta muito interna dentro de casa, depois essa luta começa a ir para rua. E aí que eu entendo o que é lutar, o que é militar, e o que é se envolver na militância e entender que essa luta se expande para a cidade. Como mulher, como resistência…

PACS: E nesse processo todo, o que você acha que te movimentou?

Ana: As mulheres… a relação com as mulheres. A minha casa sempre teve muitas mulheres, minha tia, minha avó, minha mãe, e isso sempre me moveu. O amor da minha família, minha família mulher. E me move, também, saber que é possível mudar essa realidade que a gente vive, que juntos é possível. Então, a mudança é o que move.

PACS: E como você se entendeu como mulher? E como mulher de luta?

Ana: Eu me entendi como mulher com 14 anos de idade, quando meu pai foi assassinado. Ali, eu precisei não só me entender como mulher, mas como pai. Muito doido isso, né? Porque, até então, eu tinha uma luta muito… não uma luta feminista. Eu não conseguia me ver feminista, mas a perda do meu pai foi um momento que eu falei: “Agora eu tenho que ser adulta, de verdade.” Então, ali eu me vejo como mulher.

Depois, quando eu chego na favela, eu começo a me entender feminista e a entender a minha luta, apesar de que ali eu não via como luta. Eu via como ferramenta de transformação. Vir para dentro da favela foi muito importante, não só pelo conflito, mas de ver como as mulheres vivem aqui dentro, como é forte o machismo aqui, como é forte o racismo, né?

PACS: Você se vê nas mulheres do passado?

Ana: Muito, a cozinha é o reflexo disso. Quando eu nem sabia direito ler e escrever, eu já sabia ajudar na cozinha, eu já tinha esse papel. Muita mulher fala que: “Ah, a gente luta por trabalho, por igualdade no trabalho…”. Eu nasci trabalhando, minha lembrança de vida é trabalhando. E a cozinha sempre nesse trabalho… ou educação, ou a cozinha, né? E eu me encontro nas mulheres do meu passado, porque são minha origem…indígena, africana. São mulheres muito fortes. E eu sempre quis ser muito forte igual a minha avó, que está hoje com 100 anos.

PACS: Como foi a sua trajetória? De onde você saiu, onde você nasceu, como você chega até aqui?

Ana: Nasci na Baixada Fluminense, em Nilópolis. Então, com nove anos, começo a dar aula em casa e continuei até os 14, quando meu pai morre. Desse tempo em diante, a gente tem que começar a rever a nossa vida, e aí, eu tenho que trabalhar como babá, ajudar minha mãe fora. Nossa vida já não era muito boa, mas ela fica muito ruim. Antes do meu pai morrer, a gente já tinha uma decisão de vir para a Penha e, quando eu faço 20 anos, eu decido vir. Falo: “Não, eu quero mesmo ficar na Penha.” E a minha mãe não quis, minha mãe quis continuar lá. Só que, para mim, era muito dolorido, porque logo depois que meu pai morreu, a minha avó não aguentou e morreu também. O meu tio foi assassinado logo em seguida, então era muito terror ficar no lugar onde três pessoas que eu amava muito morreram.

Então, eu chego na favela mesmo com esse intuito de continuar o trabalho, porque em Nilópolis não tem o tráfico armado, mas tem o jogo de bicho. Ele é muito massacrante ali, porque determina que empresa que vai ter, qual é a cor que vai ser o turno, qual o dinheiro que vai entrar, e eles são donos de tudo ali dentro. Então, a experiência que eu tinha era nenhuma com 18, 19 anos. Isso me imobilizava. Me sentir imobilizada me parava, né? Como é que eu faço para lutar? E eu vi que a favela era um lugar mais aberto, apesar de ter todo o tráfico, a inserção de projetos aqui era muito mais fácil do que lá dentro.

PACS: Como surge o CEM?

Ana: Ele nasce muito inspirado no trabalho do Luiz Poeta, que fundou o Verdejar, quando eu cheguei e vi aquele coroa, eu fiquei muito apaixonada. Coroa muito simples, com vários matos na mão, pegando, cheirando e contagiando. E eu falei: “Gente, eu quero trabalhar com isso.” Dá para ser professora e trabalhar nesses caminhos, né? Então, a gente começa e desenvolve aqui o espaço chamado Centro de Educação Multicultural. E aí, pelo Luiz Poeta e pela Marcelle, a gente chega na Rede Carioca. Eu começo a entender que o nosso trabalho não era só de educação, mas era de Agricultura Urbana, e que isso era possível. Então, a gente muda o nome para Centro de Integração da Serra da Misericórdia, envolvendo plantio, a educação e outros aspectos culturais. Eu começo a entender que a soberania alimentar nutricional pode ser eixo central desse trabalho. Através da comida que a gente começa a se transformar, a interagir e a introduzir a Agricultura Urbana nesse processo. E entender essa maturidade também, que a agrofloresta aqui não é mais possível hoje, mas é possível mudar a casa que eu estou. Ela não precisa ser de papelão, ela não precisa ser de palha, eu não preciso cagar dentro de um buraco. Eu posso acessar comida, eu posso cuidar da água, eu posso interagir com o ambiente e gerar gás. Então, esse processo de Agricultura Urbana vem abrindo, que a partir da minha casa, do meu corpo, do meu território.

PACS: Enquanto essa mulher que luta, como você sente os impactos dos megaprojetos dentro da favela?

Ana: Você consegue perceber esse grande impacto quando você sabe que está dentro de uma área verde, em recuperação urbana, e que isso não faz diferença nenhuma para a cidade. Que quanto mais se precisa de cimento e de pedra, mais eles vão explorar a terra, mais a gente vai estar fora dessa condição: “Que direito à cidade eu tenho?” Então, o processo de militarização aqui em 2012, quando veio a UPP, foi muito forte, porque um bairro que não tem escola técnica, que não tem hospital que funciona direito e você vê uma unidade de polícia pacificadora, de ocupação a cada 20 metros. Que crescimento é esse de cidade? Segurança para quê? Quando você tem um parque da cidade, que ele é gradeado por corrente e por arame farpado, e que a quadra é ocupada pela polícia. Quando durante a copa, a pedreira que explodiu uma vez por dia, passa a explodir duas vezes por dia. Para mim, ter ficado em Vargem Grande foi muito sensível — Ana precisou passar um período em Vargem Grande junto aos agricultores locais, fortalecendo a Feira da Roça — porque eu fui para um lugar que é um território muito conflituoso, mas muito diferente da favela. As armas, as coisas são todas invisíveis, mas que é uma violência muito forte, mas diferente. Só que eu conseguia dormir, porque não tinha tiro, eu tinha facilidade de ir e vir. E aí, quando eu volto, a primeira coisa que me aconteceu foi me paralisar de novo, porque fica claro como a gente normaliza a situação que a gente vive de violência. A gente naturaliza esse processo de violência contra os nossos corpos, para resistir e seguir vivendo.

Os jovens que participavam do projeto do CEM, que precisou ser paralisado por forças externas, a metade morreu, gente. Porque quando você está, você naturaliza tanto. E aí, eu falei: “Caralho, que lugar é esse? Tipo… a metade morreu, e a outra metade hoje está no tráfico.” Aí a gente via a importância do nosso trabalho e de coexistir aqui dentro, e de criar redes, de se fortalecer. Porque o projeto para favela, é mesmo um projeto de vida, para a gente não viver muito tempo, né? Quando eu vejo que a minha avó tem 100 anos, eu falo: “Gente, será que eu chego a 100 anos aqui dentro?”

PACS: Como você vê o seu corpo?

Ana: Na articulação de agroecologia, as meninas fizeram o encontro do corpo. Eu não via meu corpo, para mim era só um corpo de trabalho. Eu preciso estar de pé, para resistir e trabalhar. E aí, era um trabalho que, mesmo sendo coletivizado, era muito para o outro. Acho que a Roda de Mulheres, o grupo do GT da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro, eles começam a me entender, esse corpo meu também, né? Mas, o meu corpo, sendo bem sincera, é um corpo de trabalho.

PACS: O que você carrega nesse corpo de trabalho?

Ana: Eu carrego luta, esperança. Eu carrego vontade de vencer, sabe? Vontade de vencer junto com outras mulheres. Eu carrego amor, partilhar, solidariedade, esperança. E carrego revolta também. Muitas das vezes, porque, que relação é essa, né? Essa mesma terra que gera um fruto, que gera um alimento, que é a terra do cultivo, também nos enterra. Esse meu corpo está em qual terra, sabe? Nessa mesma terra que planta, mas essa mesma terra que a gente vê cada dia um sendo derrubado.

PACS: Você consegue ver e sentir no seu corpo de onde vem o impacto desses megaprojetos?

Ana: Eu tenho muitas doenças pulmonares, então, é difícil engolir tudo que está vindo. O pulmão sente muito… você tem que resistir, tem que estar sempre bem. Assim, eu estou com o grupo das mulheres, eu tenho que estar bem porque eu sei que a vida delas, muita das vezes, é mais difícil do que a minha. Então, é um corpo frágil por dentro, mas enrijecido por fora. É um corpo que não é cuidado, que levanta todos os dias e que, muitas vezes, nem se toca, mas que precisa estar de pé. Eu acho que eu só vivo mesmo porque eu consigo manter vivas muitas outras mulheres. Mas, a minha vida, sendo bem sincera, não é fácil. Sem demagogia, eu me vejo como uma ferramenta mesmo, que pode levar e fazer as mulheres acreditarem e transformar junto com elas.

PACS: Como respirar no meio desses conflitos?

Ana: Nesse momento, assim, quando nos unimos. Quando faço atividades com as mulheres na favela. Mas vem tanta coisa também, que ao mesmo tempo que é um respiro, é ir para casa mastigada, sofrida. Até estar no momento de respiro, acaba sendo também um momento de aflição, sem exagero.

PACS: Você acha que a luta pode ser um respiro?

Ana: Em alguns momentos, sim. Nos encontros, né? Até para você ver sua luta por outro ângulo, quando você tem outras perspectivas. O encontro é um respiro. Viajar é um respiro. Eu só viajo por conta da luta, quando tem encontro da Rede. Fora disso, eu acho que eu nunca ia viajar, pelo dinheiro, pelo acesso, ou porque eu também não ia me dar esse luxo de sair, viajar… Então, o respiro se dá também nesses grandes encontros.

PACS: De que parte do seu corpo você sente que vem a sua força?

Ana: Minha força vem da minha garra, né? Do meu peito. Acho que é por isso que a asma está sempre muito forte. Aqui, ó, no meu coração, no meu peito. Isso me faz acreditar. E, ao mesmo tempo, isso também me paralisa.

PACS: Onde a arte está em você?

Ana: A arte está nos meus turbantes, a arte está na cozinha, porque eu sempre cozinhei para as minhas irmãs. Eu não queria que elas tivessem que comer as sobras que a minha mãe trazia. Só que a variedade de pratos era muito pouca e não tinha o Google nessa época. Então, a arte começou a vir pela criatividade mesmo, de transformar o que eu tinha. Minha avó tinha um quintal onde ela plantava. A gente tinha muitas árvores frutíferas e isso que transformava todo nosso prato. Aí sempre tinha um suco, sempre tinha um talinho no meio.

PACS: O que te adoece? E o que te cura?

Ana: A pedreira me adoece. Ela me adoece quando eu vou por trás e vejo que está tudo um lixo, e cada vez pior. Ela me adoece com pó de pedra. Essa violência, simbólica e não simbólica, me adoece muito. É uma angústia o tempo todo, sabe?

Me curo quando eu estou em rede, quando eu estou em roda, sabe? Quando eu vejo alguém experimentando algo que eu fiz, que é barato, e que é possível, transformador, que vai mudar a perspectiva delas na cozinha. Porque eu sei que uma das coisas que mais sucateia o povo e que mais mantém o povo mesmo nesse lugar é a alimentação. Então, quando eu vejo que é possível pensar e transformar as pessoas a partir da alimentação, isso me dá muita vida.