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Entrevistas

#MulheresTerritóriosdeLuta: Antônia Melo e a história de resistência coletiva no Xingu

Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), publicado em 13/10/2020

Em mais uma entrevista da sequência com mulheres lutadoras da América Latina na campanha #MulheresTerritóriosdeLuta, trazemos hoje a conversa com Antônia Melo, liderança que ajudou a fundar o Movimento Xingu Vivo, de Altamira, Pará, e que luta contra a hidrelétrica de Belo Monte. Natural do Piauí, Antônia vive na região do Médio Xingu desde meados da década de 50 e é referência na atuação pela defesa dos direitos humanos e ambientais na Amazônia, sendo, inclusive, vencedora do Prêmio Ativismo Ambiental e de Direitos Humanos da Fundação Alexander Soros, no ano de 2017. O material foi produzido por Ana Luisa Queiroz e Yasmin Bitencourt, pesquisadoras e educadoras populares do Instituto Pacs.

Antônia Melo | Foto: Acervo pessoal

PACS: Qual é a história de ocupação desse território, da relação dele com as comunidades que estão aí com a terra, água e com o espaço público?

Antônia: A história de ocupação daqui da região de Altamira no Xingu é longa, do que eu conheço. Essa região é habitada por povos originários, povos indígenas, os Caiapós, Jurunas, Asurinis, Arawetés, Xipayas, Araras e Curuais Esses são os povos que, ao longo dos anos, bem antes da chegada da Igreja e dos padres, ocupavam a região do médio e do baixo Xingu. Depois, veio a ocupação dos donos de seringais, dos seringalistas que recrutavam pessoas de outros estados, principalmente do Nordeste. Eu sou nordestina, nasci no Piauí e cresci ouvindo essas histórias de que os nordestinos vinham para cá para a chamada Era da Borracha, em que houve muitos conflitos de mortes. Essa atividade mexeu muito com a região e houve muita violência contra os povos indígenas, que reagiram à entrada dos seringueiros nessa área que eles chamavam de Alto Xingu, Iriri, que são os rios afluentes do Rio Xingu. Os indígenas foram atacados em seus territórios, que foram invadidos pelos brancos. Foi na época da borracha que houve um ataque da fauna e da flora, principalmente com a matança dos gatos maracajá, que tinham o couro vendido e davam muito lucro. Nesse jogo, os envolvidos eram os seringalistas e as empresas que se apossaram desse espaço, que também era uma área indígena, para matar os gatos. Foram praticamente dez anos de muita matança desses animais para a venda de couro. Nessa mesma época da seringa, também foi o período da venda de castanha-do-Pará. Eu já morava aqui no internato e via todos os dias, na beira do cais do Rio, a chegada de barcos lotados de seringa e castanha, atividades que duraram pelo menos duas décadas de muita venda e exploração de látex, da seringueira e de castanha-do-Pará.

Depois, veio a abertura da Transamazônica, na década de 70, com o slogan do presidente da Ditadura Militar, o Médici, de “Terra sem homens, para homens sem terras”. Deixava subentendido que não existia ninguém na região, os indígenas sempre foram ignorados, assim como os cearenses do trabalho da seringa e da castanha que moravam aqui há muitos anos. Nessa época, a ocupação dessa região foi muito forte e, por trás, como tem em todos os projetos, existiam beneficiados como os fazendeiros e os grandes latifundiários. Isso culminou em um genocídio, um etnocídio contra povos indígenas, principalmente os Araras, que habitavam em Brasil Novo, a 40 km daqui, em Medicilândia.

O governo brasileiro trouxe os arigós, os cearenses, nordestinos e suas famílias inteiras para ocuparem a margem da estrada. Assim, foram criados os municípios atuais de Brasil Novo, Medicilândia, Uruará, Rurópolis, Placas, Anapu, Pacajá, para depois vir a dominação do latifúndio nessas áreas. Ao andar hoje na região da Transamazônica, observam-se poucas propriedades da agricultura familiar, porque a maioria foi devastada e agora tem grandes propriedades de fazendeiros que estão na margem da estrada. Com essa transformação, o governo abandonou essas famílias, deixando-as sem nenhum suporte. Assim, muitas delas que vieram, não tiveram como voltar para suas regiões de origem, principalmente do Nordeste, e foram obrigados a vender seus lotes de beira da estrada para o latifúndio e se concentrar no fundo dos travessões, hoje chamados “travessões dos sinais”. O projeto da Transamazônica do governo militar, ao trazer as famílias, foi uma ocupação colonialista, que tinha por trás o projeto do latifúndio.

No final da década de 80, início de 90, veio o anúncio da construção do Complexo de Barragens Kararaô. Em 89, os indígenas, liderados pelos Caiapós, fizeram uma grande mobilização aqui com mais de 1000 indígenas em Xingu, contra Kararaô. Eles foram apoiados pelos movimentos sociais, pela sobrevivência na Transamazônica, era um movimento de trabalhadoras, trabalhadores e estudantes dessa região, que foi apoiado por nós, pela Igreja e por tantos outros parceiros nacionais e internacionais. Então, o gesto heroico da índia Tuíra, chamando o representante do governo de “mentiroso”, no encontro, foi denunciado ao Banco Mundial, que iria repassar a verba para a construção de Kararaô. A instalação foi suspensa e, desde isso, esse projeto de barragem permaneceu suspenso.

Em 2000, Fernando Henrique Cardoso, antes de deixar o governo, anunciou a construção do complexo, já com nome de Belo Monte, e não mais Kararaô. Então, os povos indígenas se mobilizaram, os movimentos sociais, porque sempre houve resistência em defesa do Xingu contra a construção de barragens, isso desde a década de 60. Aí, em 2003, com o Governo Lula, ele demonstrou que tinha mesmo interesse em construir Belo Monte, que era considerado o maior projeto de seu governo. Diante de tantas mobilizações, ocupações, pelos povos indígenas e movimentos sociais contra Belo Monte, além das mais de 25 ações na justiça comprovando a inviabilização desse projeto, o governo passou por cima das leis e, junto com “juízes políticos”, aprovaram Belo Monte.

PACS: Como se deu essa ocupação colonialista?

Antônia: Chegaram os fazendeiros, os grileiros e políticos de todas as regiões do País, principalmente do Centro-Oeste, para tomar conta, quer dizer, invadir essa região. Por isso que os conflitos que já existiam historicamente se acirraram depois da construção da hidrelétrica de Belo Monte. É um outro destroço na vida das pessoas que já tinham esses espaços, como os ribeirinhos e os próprios indígenas, que sofrem com a invasão de suas terras; os agricultores da agricultura familiar, que em grande maioria foram expulsos de suas terras e que, com a indenização, que não valia muito, compram terras em outra cidade distante dessa região. Os povos indígenas, as comunidades, as famílias da cidade, tiveram suas vidas afetadas e toda a estrutura social que quase há quarenta anos se lutava para se ter uma cidade com hospitais, com escolas. Exatamente onde vem projeto após projeto, fazendo essa invasão contra a vida das pessoas. Na atualidade, primeiro veio Belo Monte e, hoje, se trabalha a grande ameaça que é a implantação desse outro monstro projeto, chamado Belo Sun, que continua junto com Belo Monte atordoando e colocando as famílias em situação de risco de vida. Com isso, todas as pessoas sofrem, perdem aquilo que já tinham. Nesse contexto, as mulheres são as principais vítimas desses projetos de destruição e morte.

PACS: Sobre a Transamazônica, quais foram e são os impactos e conflitos?

Antônia: Com a construção da Transamazônica, esse projeto de violência e morte, os impactos foram sobre a vida da população e o meio ambiente, principalmente para os povos indígenas. Teve uma ocasião em que alguns indígenas foram expostos presos em carroças pelos militares, no meio da rua, aqui em Altamira. A etnia Araras habitava esse território por onde foi aberta a picada para essa estrada, a BR-230. Naquela época, eram aqueles aviões da FAB e, até hoje, eu lembro do estrondo que eu ouvi a 40 km, porque na área da cidade do município de Brasil Novo, o governo mandou jogar uma bomba nessa aldeia indígena. Com essa quase extinção, o povo Arara passou anos tentando recuperar e aumentar o seu povo. Quanto aos impactos às famílias que foram arrancadas de suas terras, porque bem ou mal, eles estavam localizados nos seus estados de origem, principalmente no Nordeste, mesmo com a seca, eles estavam localizados, tinham seu espaço. Então, eles foram arrancados, com a propaganda enganosa do governo da época, como em todos os períodos e que ainda funciona hoje, dizendo que na região Norte tinha muita terra, fartura. Essas famílias foram jogadas aqui para abrir e povoar esse grande território da BR e muitas delas morreram de acidentes na estrada, de malária ou de um mosquito tipo um pium, mas muito mais feroz e venenoso, que causou a conhecida Síndrome Hemorrágica de Altamira. Eu mesma, quando cheguei aqui com quatro anos de idade em 1953, fui picada por esse mosquito, inchei muito e meu pai e minha mãe não tinham mais esperança que eu pudesse escapar, de tão mal, uma alergia tão forte, tão feroz, que paralisou meus rins, paralisou tudo. Mas, através das bênçãos e as luzes de Deus e do Xingu, estou hoje aqui. Assim, foram muitos os impactos na saúde da população, na perda de familiares e no trabalho, porque as famílias começaram a trabalhar pesado. Nessa época, o governo abriu um lugar que armazenava arroz, feijão, todos os produtos da terra, onde os agricultores plantavam e esses produtos todos saíam daqui para outros estados.

A abertura da Transamazônica, na questão de políticas públicas, era praticamente zero. Na época, a Irmã Serafina, que é considerada como o anjo da Transamazônica, era uma freira muito caridosa aqui na região do Xingu e alugou uma casa para receber os doentes migrantes que vieram para a Transamazônica. Ela que cuidava, buscava auxílio e comida para esses doentes. Foi extremamente impactante e doloroso esse projeto de abertura da Transamazônica. E, um dos pontos muito impactantes, que marcou a destruição desse território, foram os gananciosos latifundiários que estavam por trás de tudo isso invadindo, tirando da mão dos agricultores, porque eles não tinham condições de levar em frente o embate e foram se instalar mais nos fundos, bem distantes, a 100, 150, 80, 50 km da faixa da estrada. A inauguração dessa rodovia aconteceu com a derrubada de uma castanheira secular que tinha aqui e, hoje, esse monumento, que já está apodrecido, ganhou o nome de “pau do presidente”. Foi um ato simbólico para dizer para o que veio: a destruição do meio ambiente.

PACS: E as resistências, como se davam?

Antônia: As famílias que ficaram aqui, que não tiveram mais dinheiro para voltar, foram se arrumando e foi criado um grande movimento chamado Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica em Xingu, formado por agricultores, mulheres, estudantes, pelo sindicato de professores e pela Igreja Católica do Xingu, na pessoa de Dom Erwin, e os padres das Comunidades Eclesiais de Base. O protagonismo dessas famílias que aqui conseguiram ficar aconteceu pela organização para chamar atenção do governo e para o fato de que abrir a Transamazônica foi um erro e abandonar as pessoas seria um erro maior. Assim, esse grande movimento organizado foi formado por lideranças, pela população trabalhadora organizada que deu início às políticas públicas para essa região. Muitas vezes, os grupos iam à Brasília, Belém, cobrar por políticas. Hoje, tudo que nós temos aqui, o hospital regional de alta complexidade, as universidades, as melhorias na saúde, na educação, tudo que avançamos foi pela luta dos trabalhadores e trabalhadoras de várias categorias daqui.

E, depois de cinquenta anos, essa estrada não foi pavimentada da forma como deveria ser. Com as famílias agricultoras à margem, não foi desenvolvido um melhor acesso para elas, nem políticas públicas e, acima de tudo, sem investimentos para a agricultura familiar, que nunca foi uma prioridade para o governo. Essa luta hoje continua nos municípios pelos grupos organizados, liderados pelas mulheres. Atualmente, nós temos uma grande organização delas em todos os municípios, que se articulam e lutam contra a violência à mulher, por direitos sociais, políticas públicas e pela questão dos direitos humanos.

PACS: E os megaprojetos atuais, Belo Monte e Belo Sun?

Antônia: Bem antes, já na abertura da Transamazônica, já tinha aqui na Volta Grande do Xingu uma mineradora, já que a área é riquíssima em minerais e em ouro, e por isso, sempre foi cobiçada por políticos. Jader Barbalho conduzia essa mineração, que era chamada Oca, e depois Taboca, que os garimpeiros tradicionais há mais de 40 anos exploram esse ouro. O que querem hoje, o Canadá através da Vale e da Belo Sun, é passar por cima de tudo. Esses políticos, na época, principalmente pela figura de Jader Barbalho como governador do Pará, promoveram uma matança na Volta Grande contra garimpeiros, exatamente para tomar conta desse espaço e das atividades da mineração. Essa exploração nunca foi pacífica e os garimpeiros nunca tiveram nada, só o trabalho, e muitos perderam a vida. Ainda hoje tem um grupo que continua fazendo essa extração de uma forma bem artesanal, que não prejudica o meio ambiente. Há outra situação nessa região que a gente pode considerar de projeto de destruição, que é a questão da grilagem das terras, dos conflitos agrários. A reforma agrária, infelizmente, nunca foi feita nem nesse país, tampouco nesta região. Os poucos assentamentos que foram feitos nas terras públicas nunca foram legalmente efetivados por meio de políticas públicas. Infelizmente, nem o governo de Lula fez isso, deixou tudo para trás e só aumentaram os conflitos. Atualmente, é possível dizer que há um projeto de consórcio de grileiros e fazendeiros, que a todo custo querem se apossar dessas terras públicas para montar seus negócios do agronegócio, para eles é tudo sobre a terra. O que chamamos de “consórcio da morte”, que só trabalham para a destruição, tanto do meio ambiente, como da terra, dos agricultores, das pessoas que estão próximas dessas áreas ou residem nessas terras. São terras federais, que esses fazendeiros não têm os direitos garantidos de acordo com a lei.

PACS: Sobre Belo Monte, que já foi implantado, quais foram os impactos e perdas?

Antônia: Belo Monte é uma destruição com impactos irreversíveis, que nunca será fato consumado porque os prejuízos, a destruição ambiental, aquática, da fauna e flora, dos seres humanos e da saúde mental nunca vai acabar, porque cada vez mais aparecem mais impactos que esse projeto vem deixando ao longo dos anos e do dia a dia.

Belo Monte deixou o empobrecimento na vida das pessoas, sendo os grupos das famílias ribeirinhas tradicionais que viviam há anos nesses locais, com suas culturas, conservando e preservando a natureza. Ao serem expulsas de seus lugares, elas ficaram doentes, como confirma um relatório feito por uma equipe de psiquiatras e psicólogos que vieram da USP, trazida pela historiadora e jornalista Eliane Brum, pela procuradora da República Dra. Taís e pela Dra. Sônia Magalhães. Essa equipe de profissionais conversou com essas pessoas, para que sentissem o tamanho do impacto que Belo Monte deixou na vida delas. Eles definiram que essa usina deixou na vida das famílias o adoecimento humano, que parece ser invisível e não ter diagnóstico, mas que as pessoas estão doentes por dentro, espiritualmente, psicologicamente. Belo Monte não será fato consumado. Suas ruínas estão, dia após dia, na vida das pessoas. E há o empobrecimento dessa população, porque antes elas tinham seu lugar, elas dizem que antes elas eram ricas e agora elas se tornaram empobrecidas. As famílias da cidade que moravam nos bairros aqui da periferia, como eu morava, tinham acesso aos bancos, aos supermercados, às igrejas, aos hospitais e agora elas foram para longe, vivendo a 5, 6, 7 quilômetros, sem transporte, sem condições boas de vida. Aqui, elas tinham churrasquinho, vendiam uma merenda na porta da escola, vendiam croché. Principalmente as mulheres ficaram mais empobrecidas, tinham seu ganho, faziam bicos para ajudar nas despesas e na economia da família. Hoje, distantes nesses bairros, elas não têm para quem vender, porque a maioria do povo que está na região é igual a elas economicamente, não tem dinheiro nem emprego.

Volta Grande do Xingu é um território altamente ameaçado de secar, de virar um sequeiro de mais de 100 quilômetros, porque é uma barragem inviável, que não garante os 11.223 megawatts como o governo e a empresa falam. Não tem recursos suficientes para isso, e eles prendem a água e não deixam passar como era antes para esses mais de 100 quilômetros abaixo da barragem chamada Pimental, que barra no Rio Xingu. Com isso, os moradores sofrem sem água, os indígenas, os pescadores, as comunidades rurais tradicionais e muitos igarapés secaram. Se você me pergunta: “Antônia, fala aí um bem que Belo Monte trouxe?”, estou procurando ainda. Não acho não, eu sei que nunca vou encontrar.

PACS: E como está a resistência nesse processo de “projetos de morte” e como você vê o papel das mulheres nessa resistência?

Antônia: Nós somos aqui aclamadas em vários lugares do Xingu, porque fazemos resistência, claro que tem homens participando também, mas todas essas lutas são lideradas pelas mulheres. Essa resistência se dá através do Conselho Ribeirinho, que tem em sua maioria mulheres lutadoras. Tem o Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade, temos o Coletivo de Mulheres do Xingu, que nasce daqui do Movimento Xingu Vivo para Sempre, temos o Coletivo de Mulheres Negras, tem o movimento negro que, assim como outras organizações aqui em Altamira e nos outros municípios, são lideradas pelas mulheres. Nós trabalhamos na formação exatamente para que elas possam estar preparadas para saber sobre nossos direitos, para ajudar pessoas, orientar, para cobrar das autoridades seus direitos, as políticas públicas, sociais, que são as nossas bandeiras de luta. E, principalmente nesses tempos de Belo Monte, trabalhamos contra a violência às mulheres, crianças e juventude, que começamos no ano passado, porque foi um extermínio quase total da juventude na região pelas drogas, a criminalidade, e não vimos nenhuma autoridade preocupada com isso. Então, tomamos a frente, realizamos audiência e fomos nas escolas com a juventude, com as crianças, com os adolescentes, para que eles falassem naquele espaço. E, esse ano, estamos com uma parceria com uma entidade que há muito tempo está conosco, para trabalhar sobre as políticas públicas e sociais para a infância e adolescência de Altamira. Porque Belo Monte não trouxe nada para eles, trouxe a criminalidade, as drogas e a morte. As mulheres rurais lutam pelas políticas públicas para o meio rural, pela questão ambiental, e estão nessa linha junto conosco nessas bandeiras de lutas. Só não ocupamos o poder público. Apesar de existirem algumas mulheres na Câmara de Vereadores, infelizmente elas não nos representam. Apenas uma delas que é corajosa, que fala. Fora esse exemplo, estamos ausentes no espaço político.

PACS: Quais outros impactos você vê que atingiram mais especificamente as mulheres com esses megaprojetos?

Antônia: Altamira sempre foi palco de cidade violência contra mulheres e crianças. Na nossa luta, principalmente liderada pelas mulheres, nós conseguimos reduzir muito isso, com outros parceiros, mas sempre fomos nós, as lideranças, na linha de frente. Conseguimos parar o assassinato das crianças na década de 1988 a 1993, no caso dos meninos emasculados em Altamira. Conseguimos parar, a gente diz que 99%, os crimes e assassinatos contra as mulheres. Fizemos um trabalho de sensibilização nas escolas sobre a violência e conseguimos trazer para cá uma delegacia de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica. Também foi uma conquista a chegada dos órgãos de sistema de direitos, sistema de justiça, ministério público, defensoria, juizado na região. Tudo foi luta nossa, com outros parceiros, mas sempre com nós, mulheres, na liderança.

Com Belo Monte o grande impacto sobre as mulheres foi a volta da violência doméstica, muitas foram assassinadas, inclusive aquelas que trabalhavam nesse empreendimento vindas de outros estados. Tivemos notícias que foram assassinadas dentro do trabalho. Muitas sofreram violência sexual. Não podiam sair na rua, com o local cheio de peão, de trabalhadores da obra. As mulheres ficavam expostas aos assédios e violência sexual. Entre meninas e adolescentes, aumentaram os números de gravidez na juventude. Um problema também foi a desestruturação familiar, porque mulheres tinham que sair para trabalhar, os filhos ficavam jogados e caiam na criminalidade, nas drogas. Diziam que grande maioria desses postos de trabalhos de Altamira seriam para as mulheres da região e não foi verdade, porque elas pegaram os piores trabalhos, mais pesados, já tinham qualificação profissional. Apesar de eles terem aberto o espaço para qualificar as pessoas, homens e mulheres, algumas tiveram algum retorno, mas em grande parte foi uma grande farsa. Então, em meio a essa propaganda enganosa, as mais impactadas foram as mulheres.

PACS: Pode falar um pouco mais sobre as comunidades que mais foram atingidas por esses projetos?

Antônia: Toda a região foi impactada pelo aumento da violência, tanto contra as mulheres, como a violência como tal, muitos assaltos, muitos assassinatos. Altamira despontou em 2015 como uma das cidades mais violentas do país pelo tamanho da população pequena, em comparação com Rio de Janeiro e outras cidades. Toda a região foi impactada, quem morava na área rural, era um sossego, tinha paz. Hoje ninguém, em nenhuma região, tem essa paz. Sempre tem muitos crimes na área rural, de roubo, de assalto, de mortes. É um impacto geral de que a tranquilidade que tinha em Altamira e, nessa região, não existe mais e as pessoas vivem com muito cuidado, sobressaltadas. Tem entidades que falam que as empresas colocam o que elas querem colocar, para moldar a cabeça das pessoas dizem que existem “os atingidos diretos e atingidos indiretos”. Não existem atingidos indiretos, porque todas as pessoas são atingidas diretamente. Existe uma qualificação — aquelas que são expulsas, que vão passar por cima; aquelas que perdem o seu comércio, o seu modo de vida, a sua produção; aquelas que perdem a sua tranquilidade; aquelas que perdem a sua sobrevivência, como no caso das comunidades ribeirinhas que foram impactadas. As comunidades indígenas foram e estão sendo muito impactadas, porque foram altamente enganadas. É o grupo que, tanto a empresa, quanto o governo investe mais para tentar calar, porque sempre foi o grupo de força da região na luta pela defesa de seus territórios e suas vidas. Não é à toa que o Ministério Público Federal tem 25 ações e, dessas todas, o ponto focal são os impactos contra as comunidades indígenas. Por fim, a última das ações é uma que condena a Norte Energia e o governo por etnocídio dos povos indígenas aqui do médio Xingu.

Além desses dois grupos muito impactados, as famílias ribeirinhas que foram expulsas de onde hoje é o lago aqui em Altamira, nos conselhos elas foram obrigadas pelo Ibama, com o pedido do Ministério Público Federal para que elas fossem realocadas, reassentadas numa terra próxima ao rio, na área do lago. Há quase três anos que essa briga acontece. Até então, foram assentadas 140 e poucas famílias, mas tem mais de 200 para serem reassentadas e, até agora, isso não saiu do papel. Essas pessoas estão pela cidade, passando fome, algumas mais de idade já faleceram. Perderam o rio ou moram longe do rio, sem condições de subsistência. As que estão reassentadas não têm condições de produzir alimento, porque o rio não tem mais peixe. Esse é o quadro extremamente violento, esse é um crime contra a humanidade dos povos do médio Xingu. As outras comunidades que na cidade moravam em bairros periféricos, mesmo no centro da cidade em meio aos alagamentos, as pessoas viviam bem razoavelmente, mas nós sempre lutamos para que fossem feitos aterros e melhorias nesses bairros, mas eles não fizeram porque já esperavam por esse projeto destruidor, que é Belo Monte. Essas populações foram arrancadas para longe, ficaram desempregadas em sua grande maioria, sem condições de sobrevivência, sem água. Vários pesquisadores do Brasil e do mundo que vieram aqui, que todo ano vêm desenvolver teses de doutorado e mestrado, estudam esse impacto do projeto de Belo Monte e eles alegam que depois de ouvir e fazer as pesquisas, que o maior impacto que Belo Monte trouxe para a vida das pessoas foi a violência e a falta de água. Se você me pergunta quem é mais impactado, são as comunidades ribeirinhas, depois os indígenas, e por aí vai. E não podemos esquecer também que a infância e juventude foi e está sendo ainda um grupo muitíssimo impactado, que sofreu a destruição de seu futuro.

PACS: Pensando nas possibilidades diante desse cenário tão difícil, qual é o mundo que você acha que as mulheres de luta podem construir?

Antônia: Eu acredito que as mulheres de luta podem construir e estão construindo um mundo ambiental de vida e de paz. Caminhando e lutando é que se constrói a paz. É isso que nós estamos fazendo. Lutando para a construção de um mundo ambientalmente, ecologicamente sustentável e um mundo de paz para as presentes e as futuras gerações.

PACS: Nós agradecemos muito. Obrigada por sua força, sabedoria e luta.

Antônia: Eu sou uma pessoa, meu compromisso é esse. Todo esse trabalho não é isolado, ele é coletivo. E obrigada também vocês que vieram de longe para o encontro do Núcleos da Bacia do Xingu. Contamos com a parceria de vocês que têm nos ajudado a fortalecer esta luta por um mundo ecologicamente conservado, respeitando as áreas preservadas com envolvimento das populações tradicionais, comunidades do campo e cidades em suas culturas, economias, saberes e religiosidades. Lutando por investimentos e respeito a Mãe Natureza, a Mãe Terra no Bem Viver em caminhada pela paz.