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Entrevistas

#MulheresTerritóriosdeLuta: a voz da juventude do Coletivo Martha Trindade em Santa Cruz

Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), publicado em 24/08/2020

Formado por jovens moradores do território de Santa Cruz, o Coletivo Martha Trindade foi fundado em 2016 e atua até hoje em resistência à Ternium Brasil, antiga TKCSA, localizada no bairro que fica na Zona Oeste do Rio de Janeiro. O movimento teve origem em um processo de vigilância popular em saúde relacionada com o monitoramento da qualidade do ar, em contraposição à empresa, e que hoje atua nos debates relacionados aos direitos à cidade e contra as violações socioambientais provocadas em toda a trajetória de atuação da maior siderúrgica da América Latina.

Em sequência às entrevistas com mulheres lutadoras da América Latina na campanha #MulheresTerritóriosdeLuta, trazemos hoje a conversa com Wanessa Afonso, Jamilly do Carmo Aline Marins, três jovens do Coletivo Martha Trindade. O material foi realizado por Marina Praça e Rafaela Dornelas, pesquisadoras e educadoras populares do Instituto Pacs.

Foto: Coletivo Martha Trindade

Pacs: O que é luta para você? O que te movimenta?

Wanessa: Defino luta como articulação, estratégia e avanço. O que me movimenta é me sentir incluída em locais e em grupos de pessoas que pensam parecido, de mulheres, periféricos e pessoas que tem uma realidade parecida com a minha.
Aline: Para mim, luta é quando algo que incomoda e me faz querer mudar aquilo. O que me movimenta e motiva é quando vejo que o que estou fazendo em prol de uma ideia está fazendo bem e dando força para outras pessoas também. Jamilly: O que me movimenta é ter algo que é do meu interesse, em comum com aquilo que acredito. Estar em busca daquilo que você acredita e estar vendo algum retorno, ou até mesmo me frustrar por não conseguir, mas acreditar naquela ideia.

Pacs: Vocês lembram da chegada da empresa? O que vocês sentiram de mudança com esse processo?

Wanessa: Gente, quem não ficou com medo daquelas lendas de “fulano veio de outro estado, é estuprador”, “está tendo estupro perto da empresa”?

Aline: E os coreanos, chineses… não sei de onde vinham. Me lembro que assim que começou eu já senti as diferenças porque meu pai é pescador e teve que parar de pescar, ou se fosse pescar tinha que tomar muito mais cuidado, porque estavam começando a ter ameaças por conta da empresa. E depois, por conta da ponte, eles não conseguiam pegar o mesmo caminho do porto e tinham que dar uma volta enorme para ter acesso a Baía de Sepetiba. Para mim, é uma memória forte desse período, de parar de pescar, de parar de passear de barco. E aí vem as histórias dos trabalhadores que eram presos, que vinham pra cá e nós tínhamos que tomar cuidado porque aqui eles viviam livremente, iam no mercado, moravam. Tinham essas histórias de estupro, de ter que tomar cuidado na rua…Ainda mais porque éramos novinhas na época, não entendia muito bem essas coisas, mas tinha que aprender a lidar com isso.

Jamilly: Senti mudanças com relação a poeira enorme que passou a ter, algo que não existia tanto. Tiveram os impactos das enchentes e alagamentos que mudaram bastante a cara do conjunto habitacional, as pessoas que viviam aqui e se mudaram por causa disso tudo, a mudança do fluxo de veículos, a construção das ciclovias….

Wanessa: É bastante do que a Jamilly falou e do que Aline falou em relação ao pai dela. Fora o medo de andar no meio de vários homens que não conhecemos, que é uma problemática muito apontada pelas nossas mães, no meu caso só minha mãe. Tem a normalização que houve dos motoristas de vans ficarem com garotas das nossas idades, uma normalização da pedofilia que existe nas periferias já há algum tempo e víamos isso. Só que aqui tínhamos a noção de quem eram os homens que sondavam as garotinhas e quando aparecem homens que a gente não conhece e não tem noção de onde vieram, é mais complicado. Eu ficava com muito medo porque os próprios homens manipulavam as mulheres no sentido de falar que elas são “muito maduras”, sendo que eram de uma idade claramente infantil e muitas vezes nem com o corpo desenvolvido. O impacto que eu lembro é nesse sentido.

Aline Marins, integrante do Coletivo Martha Trindade | Foto: Acervo pessoal

Pacs: O que vocês veem nos seus corpos? O que vocês carregam de dores e potências? É possível identificar nos corpos os impactos vividos pelo megaprojeto?

Jamilly: Nesse contexto de pandemia e pessoalmente falando, sinto um corpo cansado, porque muitas coisas mudaram nesse processo de estar mais tempo em casa, para quem pode. Pode ser que para outras pessoas não seja nessa forma, mas no meu caso é um corpo cansado, porque está sobrecarregado, de afazeres que estão mais intensificados devido ao contexto, no tempo e espaço, no caso dos megaprojetos e da pandemia. E também cansado de ver as pessoas falaram “você é forte e consegue estar fazendo isso tudo”, mas que na verdade nem queria estar fazendo isso tudo, porque nem precisava. Mas por ser um corpo jovem, também é um corpo cheio de forças e energia para conseguir reunir tudo aquilo que estamos passando e conseguir encontrar algum motivo para conseguir fazer e agir. A minha força está em constantemente olhar para o passado, pra todos os meus processos de luta e para as pessoas que já fizeram e fazem por mim também.

Wanessa: Sou mais pessimista em relação ao corpo, já não me via bem antes, continuo me vendo mal e a tendência para mim é piorar, principalmente na questão respiratória. Já são muito anos vivendo com problemas e depois que eu voltei de Seropédica para Santa Cruz eles se agravaram. Ultimamente está bem pior, em situações pequenas como não conseguir subir e descer escadas duas vezes e lavar uma louça depois. Tenho que sentar e esperar para conseguir fazer as coisas. Entendo que não sou uma pessoa muito cuidadosa com o meu corpo por questões de autoestima, não acho que vale a pena me importar muito com meu corpo. Se o meu corpo não estiver bem, não consigo avançar em nada. Tenho aprendido isso na marra, desde o ano passado porque passei meu aniversário de cama, sozinha em casa, já que fiquei muito doente, perdi emprego, reprovei na faculdade… O que me dá força atualmente é não mais olhar para o passado e sim para as potencialidades futuras, não minha como pessoa, mas dos locais que estou inserida, do território em si. Não funciona olhar para trás. Eu sei que já avançamos em bastante coisa, mas não acho que deveria ter sido tão pouco, principalmente em relação a luta antirracista e direito das mulheres.

Aline: Para mim, é um pouco sobre o corpo que perdeu sua identidade. Se for olhar como era antes da empresa e como é hoje… Aqui em casa tínhamos uma rotina muito mais saudável do que temos hoje em dia. Tinha apicultor, tínhamos acesso a mel o tempo todo, não ficávamos tão doentes quanto a gente tem ficado hoje em dia. E também tem a perda da identidade de poder sair para fazer os passeios de barco, uma rotina que tínhamos por causa do meu pai e que hoje não temos mais. E com isso, começamos a ter questões físicas — eu tenho várias alergias respiratórias, a Aliane, minha irmã, é cheia de alergias dermatológicas. Acredito que se não tivesse a siderúrgica aqui, teríamos um outro estilo de vida, que foi retirado da gente. É um corpo cansado porque vê tudo que acontece há tantos anos, mas que ainda assim tenta continuar e seguir em frente.

Wanessa Afonso, integrante do Coletivo Martha Trindade | Foto: Acervo pessoal

Pacs: O que é cuidado para você? Como você se cuida? O que te adoece e o que te cura?

Aline: Me sinto muito bem quando estou ajudando, quando consigo ser melhor para uma outra pessoa. O que me adoece é injustiça, coisas que são distantes de eu poder fazer algo para ajudar. Me adoece bastante, me deixa bem ansiosa.

Jamille: Injustiça também me adoece bastante, é algo que me tira do sério, a ponto de brigar ao ver uma situação que me deixa inconformada. Me adoece também o fato de não estar produzindo, de estar parada. Em termos de cuidado, cuidar dos outros é também uma forma de autocuidado. Ser mais atencioso e cuidar das pessoas que também cuidam de você traz um sentimento bom, no sentido emocional e mental. Mas tem os excessos também, quando a gente acaba cuidando demais dos outros e esquecemos de cuidar de nós mesmas. Um dos maiores desafios dessa quarentena é de ter um cuidado mental. Estamos sempre inventando alguma coisa para se sentir bem mentalmente, para não pirar. É ouvir uma música, fazer uma comida que te agrade, fazer coisas para distrair e não ficar com muita neura. É sobre tentar não pirar.

Wanessa: No meu caso, a luta me adoece e me cura ao mesmo tempo porque fico muito imersa nas situações, foco muito mais no bem de outras pessoas e não no meu. Ao mesmo tempo, faz bem no sentido de ver o trabalho sendo reconhecido, de ver que isso estimula outras pessoas, de receber retornos de agradecendo e falando que o nosso trabalho ajudou bastante… Mas adoece, porque temos sofrido ameaças em alguns territórios, meu telefone vazou, tem pessoas que acham que a gente é obrigado a fazer o papel que o Estado não faz, e nós somos pessoas físicas… Então são coisas que complicam um pouco.

Pacs: Como vocês, mulheres jovens, veem o processo das ações judiciais?

Aline: É muito desgastante porque sempre que acontece algo assim, as pessoas vêm aqui em casa, temos que correr atrás. É cansativo. Ao mesmo tempo, para quem está envolvido nas ações, sinto que dá um pouco de esperança, já que não conseguimos tirar a empresa daqui. A ação foi o que restou, é uma ponta de esperança. Uma justiça em meio a tantas injustiças que são feitas aqui. Mas é muito cansativo porque tem que estar sempre tentando articular uma coisa, correr atrás de outra, ficar em cima de algumas pessoas, do Ministério Público, de advogado, de provas… A demora é algo que desgasta muito. Eu vejo como um desgaste, mas também como esperança.

Jamilly: Eu não tenho tanto contato direto, mas vejo que inicialmente as pessoas achavam que não seria um processo tão demorado. As pessoas não tinham muito essa consciência, porque parecia meio óbvio o impacto causado, tinha um nexo causal. Não foi algo que as pessoas achavam que teriam que ficar brigando por tanto tempo.

Wanessa: Eu conheço um pouco, mas não tenho muito o que dizer. Não é uma área que tenho muito interesse, apesar de achar muito importante e relevante que continue sendo feito. Mas é que os processos são tão demorados que fico ansiosa e me faz mal.

Santa Cruz, Rio de Janeiro
Jamilly do Carmo, integrante do Coletivo Trindade | Foto: Acervo pessoal