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Entrevistas

MulheresTerritóriosdeLuta: Tchenna Maso, as arpilleras, a resistência do Rio Doce e a voz das mulheres no MAB

Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs) – Publicado em 21/01/2021

Dando sequência à série de entrevistas com lutadoras da América Latina pela campanha #MulheresTerritóriosdeLuta, compartilhamos hoje uma conversa com Tchenna Maso, advogada, militante do Movimento dos Atingidos e das Atingidas por Barragens (MAB), que trabalha, dentre outras coisas, com mulheres atingidas no Rio Doce. A entrevista foi realizada por Marina Praça, Rafaela Dornelas e Yasmin Bitencourt, ambas do Instituto Pacs, e a edição do texto por Karoline Kina.

Foto: Acervo pessoal

PACS: Como se deu a história da visibilidade das mulheres no MAB?

Tchenna: O MAB tem 31 anos de história e, mais especificamente em 2008 e 2009, começamos a dar a devida atenção ao tema das mulheres. Tiveram várias resistências de barragens, como a de Campos Novos, que é bem antiga (início de 2000) e foi emblemática pela violência dos trabalhadores que vêm, chegam nas comunidades e geram esses assédios. Tem 37 crianças que são filhas de trabalhadores que vieram e depois foram embora. No contexto, é uma questão que aparece como uma discussão, mas não se consegue fazer essa análise estrutural de que isso, na verdade, é um padrão. Tinham vários casos de violência, como a história da Claides *, que aparece no filme das “Arpilleras”, porque ela era a única mulher na negociação, entre a maioria dos homens.

No final dos anos 1990, o MAB quase morreu — ele se forma enquanto movimento nacional em 1992 e era uma resistência ao setor elétrico em uma época complexa– porque essa época foi um verdadeiro massacre de privatizações, aconteceram muitas desterritorializações. Até conseguir formular e entender o que estava em jogo, foram uns dez anos. Em 2000 o MAB se fecha nos primeiros seis anos para se reestruturar e, a partir disso, começa a se aprofundar também em temáticas feministas.

PACS: Qual o papel das mulheres no MAB e como surgiu a metodologia das arpilleras?

Tchenna: Em 2010, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), que antes tinha outro nome, fez um relatório da comissão de barragens em que se constatou a necessidade de dar atenção específica às mulheres. Depois desse momento, começamos a pensar mais em como trabalhar com elas, porque havia muita dificuldade no MAB, uma vez que nossas mulheres estão em zonas do interior, de baixa escolarização… O Rio Doce, por exemplo, tem índices assustadores em cidades com 22% de analfabetismo, e no meio rural é maior ainda. Há esse desafio da participação das mulheres e delas realmente irem para os espaços auto-organizados. Foi quando resgatamos a metodologia das arpilleras — técnica de bordado. Trouxemos a experiência do Chile. Lá, elas bordavam para contar histórias e juntá-las, cada mulher contando a relação com os conflitos da ditadura, sendo a memória algo muito mais pesado, essa subjetividade negada pelo silêncio de fala. Nós pensamos que seria importante para as nossas mulheres reconhecerem que os problemas eram coletivos, que o aumento da violência doméstica não era uma coisa exclusiva, mas era algo estrutural da própria violência do empreendimento. Começamos a fazer o trabalho dos bordados e queríamos que as mulheres falassem e colocassem esse conflito, queríamos dar visibilidade a ele e fazer também com que elas assumissem um papel no movimento, porque sabemos que elas são a maioria e maior força na resistência dos territórios, mas isso não refletia na estruturação do movimento, de quem ia fazer a negociação, de quem dirigia o processo. É claro que isso tinha a ver com a forma como o MAB se estrutura sendo uma organização popular de massa. Fizemos essa metodologia entre 2012 e 2015 e foram muitas peças produzidas, algo como mais de mil, fomos perdendo a noção do todo. Elas gostavam e se reuniam para fazer, havia uma simbologia e uma mística desse bordado coletivo, das arpilleras. Nem todas as regiões pegaram o tema da mesma forma, mas muitas produziram e continuam produzindo para enfeitar a casa, várias formas se derivaram disso, e o que percebemos é que nesses três anos, muitas delas viraram direção do movimento. Hoje, no MAB, todos os estados são dirigidos por mulheres, elas são a maioria. De fato, refletiu a realidade, porque a base social é, na sua maioria, de mulheres e ao se refletir na composição, foi um grande salto de representatividade.

Além disso, as arpilleras conseguiram tocar um público da sociedade que não tocamos. Isso deu uma visibilidade e o encerramento foi uma exposição que fizemos no Memorial da América Latina, em 2015, que conseguiu reunir sete mil pessoas da sociedade civil de São Paulo. Isso, para nós, foi muito marcante. Diversas pessoas querem fazer pesquisa sobre isso e nós damos muitas entrevistas sobre o tema, mas virou uma forma de dizer o quão violento é toda a vivência das mulheres atingidas pelas barragens. No nosso caso, nós colocamos mulheres para montarem e serem monitoras da exposição, também com o objetivo de romper com o mundo da curadoria, da arte, porque elas veem outras pessoas admirando os trabalhos delas e reconhecendo a importância de dizer aquilo. As mulheres que passaram pelas exposições também têm um processo de fortalecimento de si mesmas, e é também uma forma de falar sobre algo tão triste, de uma forma mais doce, discutindo dimensões da subjetividade que são tão importantes nesses conflitos, que é o que a gente não consegue dar visibilidade.

Foto: Acervo pessoal

PACS: Você que acompanha os impactos do rompimento das barragens em Minas. Quais foram os principais impactos da metodologia das arpilleras em Brumadinho, por exemplo?

Tchenna: É muito forte em Brumadinho porque, dos 272 mortos, 80% eram homens, então a maioria deles deixaram viúvas, são as mulheres que ficam. O método das arpilleras, que nós entendemos como um método de educação popular feminista, fez muita diferença nesse processo organizativo, delas se verem, dialogarem e atuarem coletivamente.

PACS: Como as arpilleras se desenvolvem durante a pandemia?

Tchenna: Na pandemia, nós estamos fazendo as peças também no sentido das mulheres exporem as suas angústias. Temos um aumento do número de casos de violência doméstica, além de muita pressão por conta do aumento do trabalho. No Espírito Santo, por exemplo, a gente pede para elas mandarem uma foto e contarem como está sendo construir tudo, e uma delas falou que “foi muito emocionante, porque a vida está difícil e, pelo menos fazer e contar isso bordando, ajuda”. Mesmo que a dinâmica esteja acontecendo individualmente, a proposta é cada uma bordar um pedaço da peça do todo, então você recebe de uma outra mulher, você costura e, depois, vamos juntar essa história. Isso é legal na pandemia, porque mantém uma rede de comunicação, tem sido uma forma de extravasar e externalizar as angústias.

PACS: Sobre os processos de reparação dos rompimentos de barragens em relação às mulheres, como o MAB atua junto à defensoria pública?

Tchenna: No caso do rio Doce, no Espírito Santo, temos uma defensoria pública mais progressista. Nós fizemos o trabalho de conectar as mulheres pelo reconhecimento, porque elas têm problemas diferentes que os homens nesses conflitos, algo que nós fazíamos no trabalho com as arpilleras. Fizemos um diagnóstico, que foi basicamente um questionário que aplicamos, mas que deu subsídios formais para que a defensoria pudesse abrir um processo administrativo. Assim, produzimos um relatório para dizer que a Renova, que é a fundação da reparação, aumenta a desigualdade de gênero. Ela não tinha uma política específica de tratamento de gênero, não desagregava dados. Nós produzimos muito em cima disso. Você pega o mainstream do Direitos Humanos, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), várias normativas que falam sobre o tratamento específico sobre mulheres e eles não aplicavam nada disso. Foram mais de cem entrevistas, o que não foram muitas, mas nosso objetivo era provar que existe. Não era qualificar tanto a informação, mas mostrar que ela era real. No caso do Rio Doce, nós desvendamos que as mulheres são metade do grupo de pessoas cadastradas, mas só 30% delas recebem indenização. Desses 30%, só 15% recebem diretamente, e as outras recebem de forma diferente, porque o modelo de cadastro é de núcleo familiar e isso já exclui as mulheres de vários processos, de reconhecimento do trabalho formal, de acesso ao direto à renda, que é o que as mulheres tinham antes e, hoje, não têm mais. É uma perda da autonomia da renda, além da questão dos quintais ali na primeira parte do rio Doce, que é uma área mais de agricultura familiar e trouxemos todos esses elementos no relatório.

Trabalhamos junto com isso em uma exposição de fotos para mostrar a cara dessas mulheres também, que só foi possível nesse encontro MAB com a defensoria disposta a atuar. Tanto que só conseguimos fazer isso no Espírito Santo. Em Minas, não conseguimos fazer a mesma experiência com a defensoria. Tem esse problema nas instituições de justiça que é o profissionalismo, de você encontrar um ator progressista. A Fundação Getúlio Vargas estava fazendo alguns trabalhos lá e levantou um aumento dos casos de aborto e, com isso, nós começamos uma discussão nova no ano passado sobre saúde sexual e reprodutiva, que está muito relacionada à contaminação dessas zonas. Estamos no meio desse trabalho ainda, de obrigar o MPF e as prefeituras a visibilizarem esses dados. Todas as mulheres reclamam de aborto a partir do rompimento das barragens e ninguém acha que pode haver alguma conexão.

PACS: Vocês têm trabalhado a ideia dos corpos territórios e os impactos que partem dos corpos e dos sentidos das mulheres?

Tchenna: Entrando um pouco nessa discussão sobre os corpos e territórios, ela é uma discussão que ainda não está colocada como tal. Agora, com o caso do Rio Doce, nós tivemos muito adoecimento da militância, muito adoecimento das pessoas no MAB, tivemos a morte de algumas mulheres que são mais anciãs de Barra Longa… O processo de definhamento é muito grande. E nós começamos a fazer uma discussão sobre saúde no MAB, a partir do Rio Doce. Na pandemia, nós estamos tendo encontros com o pessoal da medicina chinesa para podermos lidar com a situação de saúde mental nossa, como um todo. Como nós somos um movimento que se propõe a fazer a organização popular e contribuir nessa discussão sobre a vida, essas coisas, inevitavelmente, chegam para nós, toda a dimensão dessa saúde mental está colocada. Eu vejo que nós temos gostado disso como uma forma de integrar. A pandemia colocou para a gente o cuidado e essa relação. Essa discussão sobre o quanto as empresas entram nos nossos corpos, no território, a discussão do corpo da mulher como um território são discussões que a gente ainda não avançou muito no MAB, mas sei que nós vamos chegar nesse lugar a partir disso.

Foto: Acervo pessoal

PACS: E quais são os desafios para você, como mulher, estar nesses processos tão institucionais da política? Como você sente esse lugar que percorre desde o território no contato com as mulheres, tanto em esferas tão amplas, quanto menores?

Tchenna: Pessoalmente, eu sempre fui uma pessoa de bastidores, por conta da minha formação no Direito. Acabo fazendo esse papel de trás das negociações, articulação política, mesmo fazendo oficinas nos territórios, mas, de fato, com o Rio Doce foi diferente. É um território que eu sempre estava e morava. É muito pesado, porque acaba que as comunidades não têm um espaço para colocar as angústias, e elas acabam colocando em você, porque é a única que aparece lá, seja para bater ou abraçar. Nós só apanhamos muito no Rio Doce, em termos de conquistas e vitórias, e isso levou a personalização, que é muito difícil de lidar. E às vezes precisamos olhar para nós e pedir um tempo, também. Depois de cinco anos de derrotas, porque basicamente foi assim a história por lá, fica difícil. E é muito ruim, porque a forma da política masculina é muito ruim, isso é uma coisa que a gente precisa rever como um todo. Sou advogada, carrego um título que é muito mais fácil, mas ter que ocupar esse lugar de violência, do enfrentamento, de se colocar. Tive muitos problemas com outros trabalhos de outros pesquisadores ou mesmo de organizações, pela necessidade de sempre precisar se colocar de maneira forte. Quando encontro uma companheira que está sofrendo violência doméstica, eu farei de tudo para poder resolver aquilo. Você se comove de uma forma diferente. Quando nós enfrentamos um caso de estupro, é inevitável pensar… Qual é o nosso medo maior senão ser estuprada algum dia? Quando você encontra uma atingida que vivenciou isso, você fica com sangue nos olhos. Enfim, as pessoas não percebem o quanto, de fato, é um peso para a mulher. E o que mais me doeu é que isso não vinha das empresas, algo que eu já esperava, mas de militantes, pessoas que eu não imaginava que tinham um discurso machista e racista. Isso, para mim, foi muito ruim e muito desgastante. Foram consequências políticas chatas, e as pessoas se conformam também, “ok, você cuida da parte do Direito, só isso”, como se eu tivesse que ocupar só esse lugar. Eu não vou nisso. As questões estão interconectadas e a gente as enfrenta em um todo.

PACS: De onde vem a sua força para seguir?

Tchenna: De outro lado, é com as mulheres, entre nós, que ficamos melhor. Particularmente, depois dessa experiência do Rio Doce, minha crença da reinvenção política é das mulheres. Mesmo nos movimentos com os companheiros, acho que, enquanto não nascer uma geração desconstruída desse patriarcado, existem muitos limites da forma de construir a política. Não estou excluindo os companheiros, não quero que eles morram, mas acredito mais na potência da construção das mulheres. Eu organizo mais mulheres do que homens, para mim é um cenário muito real. Também de ver muitas companheiras do Espírito Santo que não falavam e hoje falam, são super lideranças, enfrentam sozinhas nas comunidades. Várias companheiras que viviam relações abusivas por muito tempo, saírem disso… São pequenos processos. Elas contando sobre bordar na pandemia… Ok, tem Bolsonaro, tem tudo isso, mas tem uma atingida fazendo arpilleras e são coisas que são muito boas.