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A ancestralidade como forma de resistência — Saney Souza

Minha avó tinha o nome de Sabina, que também era o nome da mãe de Zumbi dos Palmares. Ela era uma pessoa extremamente vaidosa, que adorava usar lenços, estava sempre bem arrumadinha e eu cresci vendo isso. Até hoje, eu guardo um lenço que era dela, porque eu tenho essa grande referência na minha identificação por conta do turbante, estou sempre com lenço na cabeça, porque eu cresci vendo a minha avó assim. Então, parte da minha identidade vem dela.

Saney Souza | Foto: Instituto Pacs

Ela deixou de viver fisicamente quando tinha 92 anos, morreu dentro de casa. Apesar de ter uma enfermidade, no dia que faleceu ela não sentia dor, ela só olhou para minha mãe que estava dando uma arrumada na casa, deu um pequeno sorriso e partiu. Quando a gente pensa sobre o plano físico, a gente associa muito à questão da dor, da perda, de você não ver mais a pessoa. Mas, quando a gente fala das resistências, a gente traz tudo isso que não está vivo fisicamente e que a nossa luta, a forma que a gente é e está na sociedade hoje, nesses enfrentamentos todos, resgata um pouco de cada uma dessas pessoas que não estão mais aqui.

Meu pai, Badu, fez parte de um grupo chamado “Os Tincoãs”, na década de 70. Um grupo que tocava música afro-brasileira, em uma época em que pouco se falava sobre, era algo muito violentado e estigmatizado. Se hoje já é, imagina naquele período. Foi um grupo revolucionário, de três homens negros, com atabaques e canto. Trabalho que ficou registrado na história da música no país, e até hoje é referência, principalmente quando a gente fala de música brasileira e da raiz da música afro.

Um fato curioso é que Tincoãs é o nome de uma ave, que tinha o apelido de “alma de caboclo”. Meu pai participou desse grupo, que significa essa ave, que tem esse nome, e aí ele conhece a minha mãe e os dois formam uma família, que ficou junta durante uns anos. Depois de um tempo, eles se separam, a gente vem para Campo Grande e minha mãe acaba fazendo parte de uma ocupação urbana chamada “Bosque dos Caboclos”. Eu chego nesse lugar, e aí com todo um trabalho meu e com a instituição que eu faço parte até hoje, nasce a “Coletiva de Mulheres As Caboclas”. Então, tem toda uma ligação do que o meu pai trouxe com “Os Tincoãs”, o casamento com a minha mãe, ela vir para cá e para a ocupação, e depois de um tempo eu chegar nesse grande movimento de mulheres.

Eu trago a importância dessa reflexão, porque é o que a gente é, é um pouco do lugar onde a gente mora e de uma trajetória. Eu já venho de uma continuidade, eu já venho de várias histórias, que não são só as minhas e as da minha família. É um território que a gente precisa ter muito mais vida pra contar. E, como as nossas histórias, essas memórias que a gente traz são as nossas riquezas, nosso patrimônio.

Estamos vivendo num mundo muito violento com as mulheres, sobretudo com as mulheres negras. É uma sociedade que, o tempo todo tem estigmas, inúmeros preconceitos. Então, quando trazemos um pouco da história, da experiência dos nossos territórios para compartilhar com todo mundo, é uma forma de sinalizar que tem muita coisa boa acontecendo, e que também a gente não vai deixar de continuar lutando.

Tem uma frase de Suely Carneiro que me inspira demais que diz: “Organizem-se, porque não há mais limites para a violência racista”. Então, é o que a gente tá fazendo, é para nos entendermos e nos fortalecermos.

Eu proponho que a gente traga essas pessoas que fazem parte da nossa resistência. Quem são essas mulheres? Quando foi que isso aconteceu? Como é que eu tenho essa pessoa hoje? Como eu trago isso? Pode ser por um cheiro, por uma comida, uma roupa… é assim que a gente traz essas pessoas de resistências para as nossas vidas.

*O texto foi organizado por Karoline Kina, com base na fala no terceiro Ciclo de Debates #MulheresTerritóriosdeLuta, que trouxe como tema o “Cuidado coletivo e ancestralidades nas práticas de (re)existências”. Saney é integrante da Coletiva As Caboclas e filha de Dona Hellen, símbolo da resistência negra na Zona Oeste do Rio de Janeiro.