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Fundamentalismos religiosos: a resistência dos povos indígenas, pelo olhar de Shirley Krenak

*O texto foi escrito com base na fala de Shirley Djurkunã, indígena Krenak, durante o nono Ciclo de Debates #MulheresTerritóriosdeLuta. O encontro teve como tema “Fundamentalismos religiosos em contextos de megaprojetos”, realizado em parceria com a campanha “Tire os Fundamentalismos do Caminho”. O material foi organizado por Karoline Kina.

Foto: Acervo pessoal

Meu nome é Shirley Djurkunã Krenak. “Djurkunã” significa uma pessoa que está sempre viva e disposta para caminhar, para seguir lutando. Um nome ancestral que veio da luta contra a colonização histórica e que ainda acontece 24h por dia nas nossas vidas.

“Kren” significa “cabeça” e “nak” significa “terra”, então somos um povo que acredita no poder sagrado que a terra nos traz. O poder sagrado vem de nossa espiritualidade e nós o carregamos de uma forma ancestral para o bem. Até hoje, nós mantemos a nossa fé, a nossa espiritualidade intacta, mesmo diante de tanta desgraça vinda da colonização. Uma colonização que matou e estuprou, já que os processos históricos vieram de uma forma massacrante para nós, povos indígenas do nosso país, chamado hoje de Brasil.

Ao longo da colonização, os povos indígenas sofreram muito com a questão das missões, que trouxeram outra visibilidade, de uma forma bruta e violenta, para dentro das comunidades. E queriam fazer de tudo para que a gente deixasse de acreditar no nosso sagrado, no Guiak (Grande Mestre), para acreditar no Deus que eles trouxeram de longe. Porque, essa era uma forma de matar os povos indígenas, uma forma de nos dominar. E, até hoje, eles tentam fazer isso de um jeito muito ruim, porque eles entendem que, matando a nossa espiritualidade, matando a nossa crença, matando a nossa forma de acreditar no coletivo do bem, que envolve ter a fé, eles vão nos dominar e transformar tudo que é nosso de sagrado e belo, que é a Mãe Terra, que é essa terra que nós pisamos aqui hoje.

Então, o que nos deixa muito tristes, enquanto povos indígenas, é que as pessoas utilizam a fé como mercadoria. As pessoas com espírito ruim utilizam a fé de uma forma negativa para destruir os verdadeiros donos dessas terras. Nós sabemos o valor sagrado entre o céu e a terra, a dimensão dos mundos, a nossa espiritualidade. E é isso que eles querem destruir, para tomar da gente as nossas terras, para destruir nossos rios, o planeta.

Nós somos os detentores desse saber sagrado e lutamos pra que ele não se destrua e não suma no universo, porque se isso acontecer, não vai ter mais ser humano pisando nessa terra.

Se hoje acontece tanta desgraça ambiental, queimada, destruição dos rios, poluição do ar, é porque o ser humano está deixando de acreditar no Grande Mestre lá em cima e está transformando toda crença em mercadoria. Daí que se cria diversas vertentes ligadas à fé e isso vem destruindo o ser humano.

Será que todo mundo não pode conviver na mesma terra, no mesmo lugar, sem querer tirar ou estuprar a religião do outro? Será que a gente não consegue viver numa terra tranquila, sem discriminar o outro porque ele é negro, sem discriminar o outro porque é indígena, sem discriminar o outro porque é outro? Eu tenho a minha religião, eu tenho a minha fé, eu sigo os meus ancestrais, e isso me basta. Por quê vem gente lá de fora querendo destruir isso? Que ser humano é esse? Como pensar num coletivo do bem, como pensar numa prosperidade do bem, se o outro quer destruir o sentimento da fé que existe ali?

Dentro desses fundamentalismos, existem diversos caminhos que foram criados para destruir. E não fomos nós, povos indígenas, que criamos isso. É impressionante como o homem não-indígena pisa dentro das nossas comunidades e quer tirar da nossa cabeça a ancestralidade, como ele tenta mudar o que já existe. Por que isso? Nós estamos aqui, dentro das nossas terras, e não pensamos em fazer isso com os outros. Nós não queremos mudar a fé de ninguém, mas querem mudar a nossa. Acima do fundamentalismo, que agride, mata e destrói, a gente tem o amor.

A gente está respeitando tanto o jeito de pensar do outro, mas eles não estão respeitando o nosso jeito de seguir a nossa religião. Através desse estupro de fé, isso gera tanta desgraça no mundo. Mas nós, povos indígenas, acreditamos fortemente na nossa cultura, na nossa tradição, na nossa língua, no nosso jeito de falar com o Grande Mestre, porque cada povo indígena tem o seu próprio. E isso não me faz melhor ou pior do que ninguém.

Não só o povo Krenak, mas todos os povos indígenas do Brasil são agredidos. O jeito de devolver isso pra vocês é lutando, 24h por dia, pra mostrar pra muita gente que esse não é o caminho. Se a gente não encontrar soluções, que possam andar unidas, nos que diz respeito à consciência sagrada, muita desgraça ainda está por vir.

Nesse processo todo da colonização, meu povo enfrentou tanta luta, é roubo de terra, é tráfico dos nossos ancestrais, estupro das mulheres Krenaks nas nossas terras, ditadura militar… O dia 5 de novembro de 2015 é um exemplo de tudo isso, em que aconteceu um dos piores massacres ambientais no Estado de Minas Gerais, que foi a morte do Rio Doce, provocada pela mineração. Nosso elo sagrado, nossa espiritualidade, nossa forma positiva de buscar força, vinha do rio. Foi morto, mais de 700 km de rio de água doce foi morta. Nossa espiritualidade ficou triste, ficou balanceada, pra baixo, por causa da ganância do homem, por causa disso tudo que envolve fundamentalismo, por causa dessa fé que virou mercadoria, dessa lavagem cerebral e toda essa forma que o fundamentalista de fé trazida para cá.

Mesmo com todas essas desgraças, o meu povo ainda continua intacto no que diz respeito a acreditar nos marét, nos Guiak, porque na nossa espiritualidade, o primeiro ser Krenak foi criado através dos quatro elementos da terra, e isso ninguém nunca vai mudar. Nós somos forjados com a força da natureza, e é isso que nos deixa de pé, é isso que nos deixa fortes enquanto Krenak.