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A pandemia e a militarização: o abandono social aumentou a vulnerabilidade dos mais pobres

Por Gizele Martins, comunicadora comunitária da favela da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro

Mais de 600 pessoas foram assassinadas nas favelas e periferias do Rio de Janeiro durante os primeiros quatro meses deste ano. A militarização da vida por parte dos governos brasileiros e de suas forças policiais não é novidade para quem vive nestes territórios. O mais cruel é vivenciar isso: operações policiais, tiroteios, assassinatos, paralisação do cotidiano, em meio à primeira pandemia do novo século, a COVID-19.

Foto: Frente de Mobilização da Maré

Dados afirmam que neste período de pandemia, nos meses de abril e maio, as polícias do estado do Rio de Janeiro usaram mais força letal em operações policiais do que em 2019, quando o Rio de Janeiro teve o recorde de 1.810 mortes causadas por intervenção policial. O Direito è Memória e Justiça Racial (DMJR) construiu uma sistematização de dados sobre mortes violentas de crianças e adolescentes de janeiro a março deste ano e chegou a 81 vítimas fatais.

O histórico tratamento dos governantes às populações mais pobres e negras é extremamente racista. Num momento como este, em que temos no mundo diversas organizações de saúde levantando a bandeira do direito à vida, a militarização da vida no Brasil só aumenta, mostrando cada vez mais a incoerência ao que está descrito na Constituição Brasileira ao que se refere à garantia de direitos de igualdade e justiça para todos e todas as cidadãs.

Diante do aumento da militarização e da dificuldade de se realizar trabalhos de conscientização e solidariedade num momento como este de pandemia, coletivos que integram o movimento de favelas e periferias do Rio de Janeiro entraram com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar amenizar o número de ações policiais nestes territórios. O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, foi quem proibiu em decisão liminar (provisória) a realização de operações policiais.

Com a proibição, estes mesmos coletivos de favelas e periferias estão suportando e resistindo à inúmeras criminalizações por parte das forças policiais, da mídia e da extrema direita, que neste momento ocupa os poderes federal, estadual e municipal. Além disso, são os mesmos coletivos e movimentos que estão na linha de frente da luta contra o aumento no número de infectados e mortos, levando informações, cestas básicas para as famílias mais vulneráveis e tantos outros problemas presentes num momento como este.

Diante de todas as violações, o Movimento Favelas na Luta, organizado por mais de dez coletivos de inúmeras favelas do Rio, e que neste momento de pandemia estão nos seus territórios garantido um pouco de cuidados à população de favelas como distribuição de alimentos, kits de higiene, além da produção de conteúdo de comunicação comunitária sobre o covid-19, convocou duas grandes manifestações com o título ‘Nem tiro, nem fome e nem covid: Povo negro quer viver!’, no Centro do Rio. Os dois atos foram feitos para chamar atenção sobre as várias violações que o povo vem sofrendo em seus territórios, violações cometidas pelos próprios governantes.

O limite da vida: a resistência das favelas em meio ao tiro, fome e COVID-19

Sem água, trabalho, alimentos, casa, sem atendimento médico e remédios. Esse é o quadro das famílias que estão hoje sobrevivendo nas favelas e periferias do Rio de Janeiro. A extrema pobreza bateu e vem batendo nas nossas portas e cada vez mais forte. Novamente, os coletivos de favelas e periferias são os que têm tentado amenizar a fome e tantas outras violências cotidianas.

No Conjunto de Favelas da Maré, habitada por 140 mil moradores, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, há quatro meses 20 coletivos atuantes há décadas na Maré formaram a Frente de Mobilização da Maré. Hoje, com mais de 60 voluntários, a Frente vem cadastrando as famílias mais vulneráveis e distribuindo alimentos, máscaras, álcool em gel, produtos de limpeza, além de denunciar as diversas formas de opressões que os moradores das 16 favelas da Maré estão passando nesse momento de pandemia.

É a Frente na Maré que também neste momento vem alugando carro de som, produzindo artes de rua, faixas e cartazes para espalhar na favela informações sobre a pandemia. Todas estas ações são feitas de forma voluntária e só está sendo realizada por causa das doações de organizações e indivíduos que vem apoiando o trabalho. Ou seja, este deveria ser um papel dos governantes, pois são eles que têm toda a estrutura para lidar com isso. Mas, se não fosse a Frente Maré, assim como diversos outros coletivos que têm feito os mesmos trabalhos em outras favelas, estes territórios estariam em total abandono, tudo estaria muito pior.

O Brasil já tem quase 80 mil mortes causadas pelo COVID-19, mas os governantes parecem não estar preocupados com a vida dos mais pobres, pois quem mais sofre neste período em todo o país é, sem dúvida, os favelados, periféricos, indígenas, quilombolas e as populações do campo. São estes os que mantêm a riqueza do país com sua força de trabalho e não puderam parar de trabalhar. São estes também que não têm carteira assinada, ou seja, não há uma escolha entre ir trabalhar ou ficar em casa cuidando da sua saúde e dos seus, afinal, todos precisam comer.

No dia primeiro de julho, trabalhadores de aplicativos de entregas organizaram e realizaram a sua primeira greve nacional denunciando o descuido e as violações que sofrem: alta carga horária de trabalho, aumento no número de infectados e mortos de COVID-19, falta de equipamentos de proteção individual (EPI), álcool em gel, máscaras, além da questão salarial.

Novamente, nos chama atenção o lugar de moradia desses trabalhadores. A maioria é negra e mora em favelas e periferias do Rio e de todo o país. Assim como os porteiros de prédios, empregadas domésticas, diaristas, trabalhadores de supermercados, motoristas de ônibus, uber, entre outros. Enfim, os tais trabalhadores não essenciais, mas que se tornam essenciais quando se tem uma classe média e rica que neste momento está no seu conforto do lar, cuidando da sua saúde e dos seus, mas dependendo do trabalho dos nossos, dos meus.

Sem dúvida, a histórica desigualdade social e o racismo estrutural que se coloca como prática das ações governamentais do nosso país, faz com que seja a nossa população a mais atingida pelo novo coronavírus. São os nossos que têm morrido sem nem ao menos conseguirem atendimento médico, ou mesmo o diagnóstico sobre a causa da morte. Muitos dos nossos têm morrido dentro de casa e os corpos também ficam dias e mais dias esperando a Defesa Civil para recolhimento dos corpos, não há prioridade no direito à vida, quanto mais no cuidado depois da morte.

Ou seja, são os nossos morrendo de COVID19, de fome, sem qualquer tipo de escolhas em ir trabalhar ou ficar em casa. Por isso, a luta pelo fim das operações devem ser contínua e precisamos de toda a sociedade junto, já que tiro, fome e COVID-19 nos coloca cada vez mais no limite da vida. Não! Não é possível caminharmos sozinhos nessa! A luta é e deve ser pelo direito à vida. E não é só pela sua vida. É pela minha e a vida de todos e todas.