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Corpo, território e terra: a invisibilidade dos impactos dos megaprojetos na vida das mulheres

Com o intuito de pensar a pauta de mulheres e megaprojetos junto a territórios de conflitos socioambientais, o Instituto Pacs esteve no estado do Pará, de 15 a 18 de novembro de 2019, e de Pernambuco, de 1 a 3 de dezembro, nos territórios atingidos pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu (PA), e o Complexo Industrial de Suape, na região costeira próxima a Recife (PE). O maior objetivo dos encontros era refletir junto a elas, desde uma perspectiva das coletividades, sobre a estrutura desses projetos e a identificação dos impactos e transformações vivenciadas, por meio de seus olhares e corpos.

Foto: Instituto Pacs

A bacia do Rio Xingu é a principal área impactada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, localizada próximo ao município de Altamira, no norte do Pará, desde o início de suas obras, em 2011. Atualmente, foi apontada a possibilidade do rompimento da barragem Pimental, pertencente à empresa, que corta uma parte da extensão do rio. De acordo com Ana Laide, que faz parte do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, esta ameaça pode fazer com que as águas tomem o território do entorno. “Existe um povo e uma natureza aqui em volta dessa barragem que pode ser sufocada pelas águas do Rio Xingu. Isso é uma violação, pois o Xingu poderá vir a matar gente que sempre viveu em harmonia com ele por conta do poder do capital”, desabafa.

O local, que abriga povos tradicionais indígenas, quilombolas e pescadores(as), é de extrema importância para os modos de vida e geração de renda da população da região. Segundo Maria de Fátima Silva, moradora da comunidade do Bambu, no município de Senador José Porfírio, o projeto Belo Monte afetou os animais e a natureza do entorno do empreendimento. “Antigamente, a gente tinha um Xingu vivo. Hoje, ele está morto. Os peixes não tem comida e muitos deles não sobrevivem. A gente sai pra pescar e vê a quantidade de peixes mortos, tudo destruído por essa empresa”, conta. Ela aponta ainda a mudança nas águas do rio, que hoje está contaminado. “Antes a gente se enxergava na água, hoje, ela é suja e causa doenças de pele, coceira, alergia e dor nas vistas. Nós somos ribeirinhos e pescadores, não existe outro tipo de trabalho, então não tem como a gente viver sem a água do Xingu”, complementa.

Foto: Instituto Pacs

Durante a visita do Instituto Pacs ao território, aconteceu o Encontro Comitê Popular da Bacia da Volta Grande do Xingu, tocado pelo Movimento Xingu Vivo, que tinha o intuito de construir coletividades territoriais mais autônomas e fortalecidas, avaliar os erros cometidos na luta contra a usina, além de elaborar apontamentos para o futuro. “A gente buscou garantir uma diversidade e uma unidade de falas entre quilombolas, pescadores, indígenas, agricultores, extrativistas, mas com respeito e com ética a cada etnia, a cada identidade que aqui está. O evento teve o grande esforço pra gente dar uma reviravolta nesse modelo de organização daqui”, afirma Ana. De acordo com ela, o fator principal para vencer esta conjuntura tem sido a união dos núcleos, já que estavam presentes grupos da Volta Grande do Xingu, e comunidades parceiras do Rio Tapajós, do Rio Tocantins, do Rio Guamar, entre outros. “O elemento água foi fundamental para essas conexões”, afirma.

Na atividade, Marina Praça, educadora popular e coordenadora do Pacs, participou da mesa de abertura junto à Antônia Melo, fundadora do Movimento Xingu Vivo Para Sempre e símbolo da luta contra a construção da hidrelétrica, e a sacerdotisa de umbanda, Mãe Juci D’Oyá. O momento tinha o objetivo de fazer uma reflexão direcionada à água, à natureza, à espiritualidade, aos recursos e aos impactos dos megaprojetos nas relações das comunidades com o rio. Enquanto Antônia contribuiu com histórias e memórias sobre o território, Mãe Juci abordou a questão do significado, do sagrado, da espiritualidade e da ancestralidade. Já Marina teve uma fala denominada “Meu corpo, meu rio”, onde trouxe a perspectiva do “corpo-território-terra” atingido por essa lógica de modelo de desenvolvimento. “Quando a gente sofre um impacto no território, a gente sente no corpo também, é físico e emocional. Tudo que a gente vive fica marcado nos nossos corpos e quando a gente se permite sentir isso pode ser muito penoso, mas traz uma potência do corpo-sentido, da dor transformada em re-existência”, afirma.

Foto: Instituto Pacs

Além disso, o Pacs promoveu uma oficina chamada “As Secas e as Mulheres Rios”, com as mulheres das margens da Volta Grande do Xingu, com o objetivo de mapear coletivamente os impactos sofridos em suas vidas e as transformações vividas no território por conta da presença de um megaprojeto da magnitude da Usina de Belo Monte. Segundo Ana Luisa Queiroz, assessora técnica do instituto, é de grande importância a troca de experiências sobre estas realidades. “São retratos de descaso e impactos estruturais em suas formas de vida”, disse.

Foto: Instituto Pacs

Já em Pernambuco, o instituto esteve na região metropolitana de Recife, onde é localizado o Complexo Industrial Portuário de Suape, inaugurado em 1983 e considerado o maior porto público do Nordeste e o quinto do ranking nacional. O megaempreendimento impacta diretamente as vidas das populações da região, como é o exemplo do Quilombo de Mercês, onde a maior parte dos quilombolas foram expulsos do território ou forçados a se retirarem por conta das obras. De acordo com Ana Luisa, a apropriação local veio até na escolha do nome da empresa. “Suape é um nome que vem do Tupi Guarani e significa caminhos sinuosos, uma referência ao desenho da entrada do mar e da formação de mangues”, explica.

Foto: Instituto Pacs

Além disso, também foi feita uma atividade com as mulheres do local para a construção de um mapa de poder que identifique os atores presentes e o histórico de impactos da região a partir de suas perspectivas. A elaboração foi feita através de entrevistas, momentos de diálogo coletivo. Durante o encontro, Elô Nunes, integrante do Coletivo Mulheres de Pedra, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, facilitou um Círculo de Conversa com a participação de dez mulheres representantes de territórios afetados pelo complexo  industrial de Suape que estiveram presentes na atividade. Juntas, conversaram sobre a proposta como um momento seguro de compartilhamento, sobre o objeto que possibilita que todas possam falar e escutar atentamente umas às outras. Ao final, as participantes sentiram-se mais conectadas umas às outras pelas histórias que puderam compartilhar. O objetivo do Círculo de conversa nesta atividade surge da urgência de que as mulheres em situação de conflito e violação de direitos tem de falar, já que são constantemente silenciadas.

Foto: Instituto Pacs

De acordo com Marina Praça, as mudanças provocadas pela chegada do Complexo, composto por mais de 100 megaempreendimentos, são inúmeras e estruturais. “Existe a chegada de centenas de pessoas de fora, homens principalmente, para as obras desses empreendimentos, o que afeta diretamente a vida das comunidades e das mulheres desde a sua segurança, as relações comunitárias e familiares e gera efeitos negativos nas dinâmicas sociais, no acesso aos serviços públicos, sem aumento de renda e geração de empregos para os habitantes oriundos dali”, explica. Assim, em uma lógica de modelo de desenvolvimento racista e patriarcal, como ela aponta, as mulheres são as mais impactadas por esta realidade. “Elas perdem o direito de ir e vir, tem sua carga de trabalho doméstico multiplicada, além de se relacionarem e terem filhos com homens, que poucos meses depois somem e elas descobrem que nem o nome verdadeiro sabiam”, complementa de acordo com o que foi relatado na oficina.

Essa pauta faz parte de um processo maior de um campo político do Instituto Pacs, que une a crítica ao modelo de desenvolvimento e o debate da economia feminista, do trabalho das mulheres e do impacto dos megaprojetos em seus corpos. Para Marina, a importância das atividades nesses lugares atingidos é a contribuição na formação política e na construção de olhar coletivo das mulheres em relação a suas realidades. “Tem uma perspectiva de que essas lutas se identifiquem, de que essas mulheres se identifiquem, por isso a gente quando vai pra um território, fala do outro. A ideia é que elas possam se encontrar, se fortalecer e construir identidades comuns, e a gente possa compreender como a lógica do capitalismo, injusto, racista e patriarcal, se repete a todo tempo”, conta a educadora popular.