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Rios que se cruzam: como a siderúrgica Ternium, antiga TKCSA, impactou a vida dos moradores de Santa Cruz

*Por Alex Hercog e Instituto Pacs

Como um rio, o tempo avança sem voltar atrás e se ressignifica a cada encontro com outros afluentes. Para seu Ozeas, um dos mais antigos moradores do bairro de Santa Cruz, na zona oeste do Rio de Janeiro, o primeiro encontro com as águas da região fez mudar o curso de sua vida. Ali, no mangue e no rio, o então garoto começou a tirar o seu sustento da pesca e passou a residir definitivamente no bairro.

Foto: Anette Alencar

Em 2006, no entanto, a instalação da siderúrgica TKCSA (atual Ternium Brasil) em Santa Cruz representou uma mudança radical na vida dos moradores da região. Durante uma década a empresa operou sem licença e se tornou a maior siderúrgica da América Latina. Em 2021, seus acionistas comemoraram o “valuation” da Ternium, que no jargão capitalista significava dizer que valia à pena investir na siderúrgica que renderia até 2,8 bilhões de dólares no fluxo de caixa anual destinado aos seus acionistas. No terceiro trimestre de 2021, o lucro da empresa já superava US$ 1,20 bilhão.

Por outros motivos, 2021 também foi um ano de comemoração para seu Ozeas e sua família. Nascido no dia 24 de junho, o pescador completou nove décadas de vida. O dia em que se festeja o São João também é atribuído a Xangô, orixá que se inquieta diante das injustiças e nunca se desvia do caminho do justo.

Seu Ozeas sempre foi crítico ao modo de operação da Ternium e, com a sabedoria de quem conhece a dinâmica das águas, sempre previu os distúrbios que acabaram se concretizando. O funcionamento da siderúrgica fez com que o rio Guandu, o canal São Francisco e a bacia de Sepetiba tivessem suas águas poluídas e a vida marinha afetada por diversas obras. A tranquilidade da região foi substituída por um vai e vem constante e o céu também foi contaminado pela operação da Ternium, provocando doenças e prejudicando a qualidade de vida da população.

A chegada da siderúrgica mudou a vida das pessoas que vivem em Santa Cruz e que há mais de uma década lutam por justiça, indenização e reparação. Em 2021, um novo capítulo pôde ser escrito, já que nesse ano a Ternium precisou passar por um processo de renovação de sua licença de operação. Nesse contexto, foi lançada a campanha Licença pra quê?, promovida pelo Instituto Pacs e Coletivo Martha Trindade, contando com o apoio de diversas organizações.

Foto: Instituto Pacs

Durante todo o ano, algumas ações buscaram incidir no pedido de renovação. Nas redes sociais, as publicações contaram um pouco sobre a vida dos moradores da região, explicaram os  danos ao bairro promovidos pela instalação da siderúrgica e apresentaram alguns fenômenos, como a “chuva de prata”, resultado da poluição provocada pela empresa.

Algumas denúncias também chegaram à imprensa. O Diplomatique Brasil publicou uma matéria em que analisa as medidas de “desinvestimento” promovidas pela mineradora Vale e como a lógica de utilizar a burocracia e subterfúgios jurídicos para não indenizar vidas e territórios impactados é repetida por outras gigantes empresariais, a exemplo da Ternium. O portal argentino AnRed denunciou as violações cometidas pela siderúrgica no Brasil – sediada na Argentina, a Ternium também é acusada de contaminar o rio Paraná e o ar da cidade de La Plata.

Em artigo publicado no Massa Crítica, o professor e pesquisador Flávio Rocha questionou o “preço do desenvolvimento” trazido pela siderurgia em Santa Cruz. O material trouxe dados e um histórico da presença da Ternium e TKCSA na região. Flávio também é morador de Santa Cruz e membro do  Coletivo Martha Trindade, fundado em 2016, a partir de um processo de vigilância popular em saúde que monitorou a qualidade do ar na região afetada pela Ternium. O grupo também produz o podcast “Vozes da Juventude: escuta Santa Cruz”, que em seu último episódio trouxe o questionamento dos moradores sobre a atuação e processo de relicenciamento da siderúrgica.

No âmbito jurídico, houve um diálogo com a Defensoria e Ouvidoria junto aos moradores que possuem ações judiciais em curso contra a empresa. Após muita insistência, através da lei de acesso à informação, se teve acesso à cópia do processo da licença de operação da Ternium junto ao Instituto Estadual do Ambiente (INEA), bem como do pedido de renovação da licença.

Inicialmente, a atual licença venceria em setembro de 2021. No entanto, a Ternium protocolou seu pedido de renovação com 120 dias para o seu vencimento, prorrogando o prazo indefinidamente, até manifestação final do INEA. Em junho, o pedido foi enviado ao instituto para análise técnica, mas até o final de novembro ainda não havia sido apresentada nenhuma decisão.

A urgente luta dos moradores e moradoras contrasta com a morosidade da Justiça e a indiferença da Ternium. Para seu Ozeas, mesmo que a empresa passasse a cumprir as condicionantes ambientais, parte do estrago feito seria irreversível, como a vida marinha e os mangues destruídos. “Fui pescador, não! SOU PESCADOR!”, afirma, enquanto relembra o tempo em que a pesca “era uma coisa linda de se ver, a quantidade de peixes saltando”.

O bairro de Santa Cruz anterior à chegada da siderúrgica só existe nas lembranças de quem viveu um tempo em que a fartura de peixes sustentava toda a família, que as plantações nos quintais geravam alimentos naturais e livres de qualquer contaminação, e que se podia viver e respirar o ar da região sem adoecer.

Memórias como as de seu Ozeas e de tantos outros moradores e moradoras de Santa Cruz é que farão a luta por justiça se perpetuar no tempo e manter vivo todos e todas que ousaram se indignar e recusar o modo de vida imposto pela TKCSA/Ternium. A disposição de um senhor de 90 anos inspira mesmo diante da desesperança, porque faz manter a utopia de quem ainda acredita que a vida vale mais que o lucro. De quem, a exemplo de Xangô, não cede às injustiças.