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Além do Novembro Azul: Cultura ancestral alimentar e o combate à diabetes

De acordo com o Atlas Diabetes 2021, divulgado pela IDF (Federação Internacional de Diabetes – sigla em inglês), só neste ano, a doença foi responsável por 6,7 milhões de mortes em todo o mundo. Com a pandemia e o isolamento social, a diminuição da prática de atividade física e a dificuldade de se manter hábitos alimentares saudáveis, a incidência da doença se tornou ainda maior. Entre 2019 e 2021, um em cada 10 adultos desenvolveu diabetes tipo 2.

Apesar de pouco divulgado, novembro foi escolhido pela Organização Mundial da Saúde como mês de campanha pela conscientização e tratamento da doença. Nesse contexto, o Instituto Pacs entrevistou Sarah Rubia Baptista, mãe de um jovem diabético, culinarista, blogueira, ativista pela conscientização e tratamento da diabetes e integrante da Teia de Solidariedade da Zona Oeste do Rio de Janeiro. A entrevista foi realizada por Karoline Kina, comunicadora do Instituto Pacs.

PACS: O mês de novembro, apesar de pouco divulgado, é dedicado à campanha de conscientização da diabetes. Para você, de onde parte essa caminhada pela informação e acesso ao tratamento da doença?

Sarah: Eu entendi que é necessário que a gente comece a falar da nossa cultura ancestral de alimentação, porque ela é perfeita para o cuidado da nossa saúde. Inventaram todo esse modelo de alimentação pra ser possível vender e produzir em grande escala. Por que abandonaram aqueles hábitos das PANCS (plantas alimentícias não convencionais)? Porque não é possível fazer uma produção em grande escala, fica mais barato reduzir à couve, brócolis, alface e fazer as grandes produções. O capitalismo foi mudando nossos hábitos alimentares em benefício dele, e aí, na contramão, vem a indústria que nos oferece vitaminas em potes. Eu acho isso tão cruel, sendo que temos tudo que precisamos na natureza. Acredito que temos que começar a trazer esse resgate principalmente para as mulheres pretas.

Eu acho que a gente precisa começar a falar sobre a questão nutricional das PANCS, das ervas medicinais e de uma forma que elas voltem a ter aquele pertencimento dessa cultura e consiga fazer as substituições, cuidar da sua própria saúde. O macarrão a gente não precisa comer, quem inventou que temos que comer isso? É gostoso, mas não agrega nada na nossa saúde. Além disso, também tem a questão da atividade física. Precisamos ter pelo menos meia hora (de atividade física), não importa como, além de ter também cuidado com a saúde mental… A ideia é que exista um relaxamento e uma conexão consigo pelo menos por meia hora. Dar uma parada, dançar, fazer alguma coisa que a gente gosta, cuidar da mente, porque isso influencia muito.

PACS: Como você acredita que esse enfrentamento pode seguir para que consigamos frear o aumento de pessoas com a doença?

Sarah: Isso é bem complexo, porque vai do estilo de vida. Eu acredito que isso aconteça por três fatores: estresse, alimentação rica em carboidratos e falta de lazer. Ela chega por esses três motivos e para reverter isso é preciso mudar esses três hábitos. No dia 14 de novembro, véspera do dia mundial de conscientização da doença, eu comecei falando sobre mudar os hábitos alimentares, porque eu acho que o passo principal é você aceitar que a alimentação que você tem não é boa.

Durante a pandemia eu participei de uma live onde eu falei sobre o problema das cestas básicas distribuídas para as pessoas pobres, uma comida que é ração. Isso mantém a pessoa viva e com energia porque é carboidrato puro, mas não tem nada de nutritivo, não cuida do corpo, não alimenta todas as necessidades que o corpo tem. Aí foi quando a Teia de Solidariedade começou com as campanhas dos alimentos frescos, porque eu acho que tem que ter mesmo. E eu acho que é a gente pensar algo da questão dos hábitos alimentares das pessoas pretas, porque muitas delas comem o que sobra, que normalmente é aquela parte da carne que mais tem gordura. Hoje, a maioria deve estar comendo linguiça, porque não tem como comprar uma carne de qualidade. Quando come, é muita fritura, feijão, arroz e macarrão, tudo junto, porque eles têm fome e ao mesmo tempo o estresse aumenta essa fome. Comer é uma forma de nutrir aquele vazio e ansiedade em relação a todos os outros problemas.

PACS: Qual a importância do apoio familiar no momento de diagnóstico e no tratamento de uma pessoa diabética?

Sarah: Então, isso foi algo que eu construí. Quando meu filho ficou diabético eu já era blogueira e aí acabei direcionando apenas para diabetes, mas foi algo que construí, porque o primeiro sentimento é você ficar devastado, sem chão, não saber o que fazer. É triste, tem aquele sofrimento inicial, tem uma dieta, você vai ter que mudar a rotina e tem a fase de negação, e aí você procura a cura e vê que, às vezes, não tem como reverter. Mas o apoio familiar vem não só da forma sentimental, eu acho que é comportamental também, principalmente um diabético que está em transição para a aceitação.

Aqui, tive e tenho até hoje todo apoio da família em relação ao meu filho. Tem algumas coisas que a gente não precisa falar, meu filho já tem 19 anos, mas a gente divide esse controle. Às vezes, eu percebo que ele dormiu até mais tarde, de manhã eu vou lá, acordo cedo e meço a glicose com ele dormindo mesmo e volto a dormir. É uma coisa que é um núcleo de confiança, a gente estabeleceu confiança. Às vezes é até chato, a pessoa fica desanimada, todo mês a pessoa tem que ir buscar coisa na farmácia, então quando alguém da família chega e fala que vai por ela é um tipo de apoio que ajuda muito.

Aquela questão de achar o diabético “coitadinho” é a pior parte, porque ele não é, eu acho que o valor da glicose não define ninguém. Hoje meu filho usa uma bomba de insulina e lógico que existem muitas questões. Por exemplo, ele fez ENEM e foi toda uma preocupação, porque na prova ele não pode entrar com aparelho eletrônico. Aquilo ali pra ele já é uma tensão, saber que ele pode ser impedido de entrar em um lugar por conta de uma coisa que é a vida dele. Também tem o apoio dos amigos, que é muito importante que eles tenham essa conscientização. Não é ficar sempre lembrando da doença, mas sim fazer por fazer. “Você é assim, é meu amigo e eu estou com você.” E é também a família, porque eu acho que a família se torna um pouco diabética também.

Passeata em Copacabana no ano de 2018, por acesso à insulina e atendimento digno no SUS. | Foto: Acervo Pessoal

PACS: Como tem sido sua trajetória nessa atuação pela conscientização e tratamento da diabetes? Como isso foi acontecendo e como tem sido?

Sarah: Foi exatamente em 18 de julho de 2009 que meu filho foi diagnosticado. Na época, eu não sabia que criança poderia ter diabetes, não tinha noção do que era, só sabia que eu tinha que controlar, porque senão coisas ruins aconteceriam com meu filho. Eu encontrei uma médica que foi horrível na nossa vida, ela me culpou por isso e foram semanas de muito sofrimento. Imagina você ver a situação do seu filho e alguém dizer que você era culpada. Com isso, eu comecei a pesquisar e descobri que não era culpa minha. Como eu já era blogueira, comecei a escrever sobre o que eu estava sentindo e me perguntaram por que eu não começava um blog só para falar disso. Aí eu criei o “Eu, meu filho e o Diabetes”.

Eu fui escrevendo, até que eu encontrei uma outra mãe de São Paulo, que hoje é muito amiga. Ela tinha uma filha da idade do meu filho e a gente começou a trocar figurinha, ela tinha o blog dela e eu o meu. Assim, foram juntando mais mães e, de repente, já éramos muitas. Começamos a fazer encontros para famílias com crianças com diabetes, comecei a fazer alguns aqui no Rio e a gente reunia essas famílias que conhecíamos pela internet para as crianças brincarem. Isso foi crescendo mais e mais, até que começaram a chegar pessoas com diabetes e formamos um grupo blogueiro de diabetes. Juntos, fazíamos ações em busca de políticas públicas e começamos a ser vistos pela indústria e uma das propostas que fizemos foi teste de glicemia. A gente entendeu que muita gente morre porque quando dá entrada no hospital não faz o teste de glicemia. A gente fez uma campanha, depois virou um Projeto de Lei que passou pelo Senado e aí em 2019 foi vetado, porque alegaram não ter verba pra investir nisso nos hospitais.

A minha história com a indústria se encerrou quando a Sanofi (empresa farmacêutica) fez parceria com a Nestlé. Eles mandavam os produtos e a gente tinha que falar sobre eles. Nisso, eu me recusei a falar de uma sopa em pó, porque é contra meus princípios alimentares. Aí eu tentei explicar, porque é contraditório eu recomendar uma coisa que eu não consumo, eu não vou falar sobre isso, até porque eu acho que ninguém tem que comer nada em pó. Ali foi o primeiro atrito e dali foi descendo, eu fui me recusando, porque eu entendo que a gente tinha que falar de políticas públicas e melhoria da qualidade de vida de todo mundo e não por uma minoria. Com isso, eu terminei na feira da roça, com tudo que eu faço pro meu filho, como pães e bolos. Tudo que eu faço pra minha dieta eu comecei a comercializar e assim eu cheguei na Teia e estou aí.

PACS: Você poderia falar um pouco sobre a relação dessas duas indústrias, farmacêutica e alimentícia, que de certa forma acabam contribuindo para que a população tenha cada vez mais doenças crônicas como a diabetes?

Sarah: Então, alguns produtos te oferecem um controle da glicose, mas eles não te oferecem nutrientes. Eles falam que tem nos industrializados, mas não é o nutriente que nosso corpo precisa, é algo processado. A vitamina A de uma sopa em pó não é a mesma vitamina A de uma taioba, por exemplo, não é o mesmo processo no nosso organismo. Por mais que digam que é, não é, porque não é natural, fora que a taioba vai trazer muitos outros nutrientes junto e ela tem um sentido para estar na natureza e trazer todas essas vitaminas. A questão dos processados é que, de certa forma, nosso organismo acumula algum resíduo e adoece realmente. Hoje, uma coisa que eu digo com toda certeza é que a indústria farmacêutica relacionada à diabetes pode programar o lucro dela para os próximos 5 anos, porque de alguma forma, se o paciente não compra os medicamentos, o governo é obrigado a comprar. Dependendo do controle dos pacientes, a indústria pode programar quanto de insulina ela vai vender em determinado território e o Brasil é a festa. Mas isso não quer dizer que essa grande quantidade vendida vai trazer o controle para essas pessoas, porque não tem uma política pública de educação e saúde para autonomia, então é um dinheiro desperdiçado. Por exemplo, pro paciente que precisa de bomba de insulina, o SUS é obrigado a comprar mediante a processo judicial, algumas secretarias já distribuem, mas aquilo ali não garante nada, porque não existe uma política pública. Aí que entra questão da indústria alimentícia, porque é ela que controla. O controle é muito grande, eles determinam o estilo de alimento que a gente vai ter.

PACS: Para você, quais são os principais desafios para que a gente consiga alcançar a soberania alimentar?

Sarah: Nossa, é um desafio enorme, eu acho que a primeira coisa é começar a fazer campanhas de pertencimento à alimentação ancestral. A PANC precisa deixar de ser mato e ser reconhecida como alimento. Ela não pode mais ser símbolo de pobreza, ela alimenta e salva vidas. Eu fui criada com taioba, a gente era muito pobre, minha mãe criou a gente com as coisas que tinha no mato, tinha pé de chuchu, tinha taioba, pé de inhame, aipim… Até certa época da minha vida, eu não comia mais essas coisas, porque eu achava que isso era símbolo da pobreza, mas não é. O que está adoecendo a gente é essa comida que vendem pra gente como status de boa alimentação. Acho que a primeira coisa é trazer esse resgate alimentar e eu acho que esse já vai ser um grande passo, até porque as pessoas precisam conhecer os alimentos. Quando você vai descobrindo o que realmente é aquilo que as pessoas comem e dão pras crianças, chega a ser assustador.

Foto: Acervo pessoal

Eu acho que a construção de políticas públicas de educação para o autocuidado e a questão do pertencimento, esse resgate da alimentação ancestral precisa ser pra todos. Temos que parar de falar termos elitistas, hoje PANC faz parte do cardápio de quem pode pagar, sendo que quem não pode pagar tem isso de graça e acha que é mato, porque fizeram elas acreditarem que isso é mato, precisamos mudar essa narrativa.

PACS: Diante de todo esse contexto, qual a importância desse movimento de troca e conscientização na internet?

Sarah: Esse é um apoio que foi fundamental para mim quando eu o encontrei. Me sinto lisonjeada, porque eu fui a voz dessas mulheres. É o afeto que a gente constrói uma pelas outras no cuidado que temos com os filhos umas das outras. Por exemplo, ontem uma mãe daqui do Rio me mandou mensagem perguntando como eu estou de insumo, porque ela sabe que aqui no Rio não está tendo distribuição e a gente tem que comprar, o que é caro. Eu falei que estava sem e ela disse que tem sobrando e eu até brinquei falando para ela fazer um precinho maneiro que eu compraria. Ela disse que ia me dar. Ela me deu uma média de 2.500 reais em insumos, que era o que eu gastaria se eu fosse comprar, porque ela recebe de algum lugar e aí sobrou e ela lembrou de mim. A gente tem esse cuidado com todos do grupo, se alguém grita lá de Fortaleza que está sem insulina, é todo mundo se mobilizando para que a insulina chegue nessa família. Essa questão da troca, do cuidado com os filhos e das dicas é fundamental porque somos uma família. Antigamente a gente chamava de família azul, mas agora a gente nem sabe mais como pode chamar porque novembro azul (mês da campanha de conscientização da diabetes) quase não existe mais.

Precisamos valorizar os debates e trocas sobre saúde, desde os nossos conhecimentos e experiências de vida. A sabedoria ancestral sobre as raízes, folhas, ervas, brotos e tantos outros derivados da terra que nos nutrem, alimentam e são fundamentais para a manutenção da saúde do nosso corpo e mente.

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