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Autogestão na pandemia: a resistência agroecológica e comunitária do Centro de Integração na Serra da Misericórdia

Entrevista realizada em 19 de julho de 2021

Fotos: Reprodução / CEM

Em mais de 1 ano e meio de pandemia, não é só o cenário da Covid-19 que afeta o cotidiano da população. Além dos atrasos nas vacinas, a dificuldade em obter o auxílio emergencial, o desemprego, a escassez de água e a violência, mais de 19 milhões de pessoas estão em situação de fome e insegurança alimentar, o que afeta principalmente os territórios periféricos e favelados do campo e da cidade, as populações negra e indígena e outras comunidades tradicionais. Através de alternativas populares e estratégias coletivas de autogestão, movimentos sociais, coletivos e grupos resistem, enfrentam e transformam essa realidade. 

Plano Popular Alternativo ao Desenvolvimento (PPAD) traz a série Autogestão na Pandemia,  com quatro entrevistas de coletivos, grupos e movimentos sociais que fazem parte do Coletivo Autogestão, criado a partir do Curso Autogestão, promovido anualmente pelo Instituto Pacs. A quarta e última é com Ana Santos, educadora popular, culinarista, integrante da cozinha Trincheiros de Luta e co-fundadora do Centro de Integração na Serra da Misericórdia (CEM). O CEM é uma associação sem fins lucrativos que atua desde 2011 na Serra da Misericórdia, no Complexo de favelas da Penha, localizado na zona norte do Rio de Janeiro. Este é um espaço autogestionário e agroecológico de integração socioambiental e cultural, atuando na disputa do direito à cidade, por meio da agroecologia e agricultura urbana, sob os eixos da educação, da cidadania e da comunicação.

O material foi produzido por Isabelle Rodrigues, Aline Lima, Yasmin Bitencourt e Rafaela Dornelas, que fazem parte do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs)


Instituto Pacs: Com o que o seu movimento atua e qual a sua participação nele?

Ana Santos: Sou co-fundadora do Centro de Integração da Serra da Misericórdia, que é um movimento de fortalecimento da soberania alimentar e nutricional que se dá em parceria com instituições como o Instituto PACS, a Rede Carioca de Agricultura Urbana e os moradores, que são peças importantes e fundamentais para o trabalho, principalmente as mulheres. Nós também estamos na área de proteção ambiental e recuperação urbana da Serra da Misericórdia e esse trabalho de soberania alimentar também reflete na construção de um território de um bem-viver aqui neste espaço. Estamos localizados na Serra da Misericórdia, no complexo de favelas da Penha, que atualmente compreende onze bairros mapeados pela prefeitura e mais sete comunidades que são mais invisíveis ao Poder Público, como a Terra Prometida, que é o local que eu me encontro. 

Ana Santos, educadora popular, culinarista e co-fundadora do CEM, no Rio de Janeiro


Instituto PACS: Quais foram os principais impactos no território com o início da pandemia?


Ana Santos: A primeira coisa foi o acesso à informação… Antes mesmo de ser decretada a pandemia pela OMS, a primeira grande necessidade foi a informação. A comunicação não chegou de forma eficiente. O povo foi irradiado por notícias falsas e as informações reais sobre o que de fato era a doença não chegou. E atrelado a isso, assim que foi decretada a pandemia no mês de março, a segunda grande falta foi o suporte às famílias que não tinham trabalho de carteira assinada, que não tinham segurança, como os camelôs, as faxineiras, os catadores, profissões muito comuns dentro da favela. A falta do auxílio, a demora dos repasses… A classe média conseguiu muito rapidamente acessar informações por conta dos mecanismos de acesso ao celular e internet, mas muitos moradores daqui não tinham nem a documentação necessária. Só depois alguns conseguiram, mas até hoje muitas pessoas não tiveram acesso ao auxílio emergencial. Esses foram os dois grandes impactos e é claro que esses dois fatores reverberam na insegurança alimentar, na fome e na fragilidade do morar. Muitas pessoas vieram ocupar a Serra da Misericórdia como recurso de moradia, já que não conseguiam mais pagar aluguel. Ou comem, ou pagam aluguel. Depois, chegou em um momento que, mesmo sem pagar aluguel, não tinham como arcar com a comida dentro do barraco. Teve uma fala que para mim foi muito marcante, da Rosiane, cearense, faxineira, que ama o seu trabalho e tem várias patroas, mas nenhuma delas quis aceitar ela. Não dão um apoio para entender que as pessoas não vão deixar de faxinar porque não querem, mas porque eu não podem por causa da pandemia. A falta de suporte é imensa, seja por parte das patroas, das empresas, fora que a maioria era autônoma, vendiam doces nos trens, nos sinais, entre outras formas de geração de renda. Para muitos caíram muitos véus, como a própria fala do presidente, que disse que “era só uma gripezinha” e que mandou o povo ir para a rua e as pessoas começaram a morrer. Essas também eram coisas que se ouviam muito, primeiro em defesa e depois em decepção. Isso foi importante para nós atuarmos com mais forças nessas brechas e trabalhar fortemente a incidência política.

Instituto Pacs:  O que você destacaria como principais estratégias que vocês adotaram coletivamente para ajudar uns aos outros? 

Ana Santos: Aqui no CEM, nossa primeira medida tomada pelo movimento foi um momento de escuta e informação. Nós pegamos um infográfico da Anvisa – a informação em imagem, texto e legendas facilitava o entendimento porque muitas pessoas aqui não sabem ler – e fizemos cópias e distribuímos. Primeiro foi escutar, entender as fragilidades de quem estava trabalhando, quem já estava parando e quem precisava de alimentos e conhecer de perto as lideranças. A gente perdeu a sede do CEM em novembro de 2017 e fomos viver junto com o agricultor Francisco, com a Silvia e com as mulheres da Coletiva Hortelã. Depois, em um aluguel em uma casa na Aimoré, voltamos com as atividades infantis e com a colônia de férias, mas logo em seguida teve a pandemia. Ao mesmo tempo que estávamos nos reconhecendo nesse território com toda a experiência que já tínhamos, diante de um novo cenário, com essas mudanças e a pandemia, o processo de escuta foi excelente. E ainda conhecer as lideranças… Eu lembro da dona Maria falando que no morro as pessoas já passaram fome, que nesses últimos dez anos o povo vem passando fome e agora com a pandemia é que as pessoas estão preocupadas. Essa foi uma frase muito forte para pensar a estratégia desse processo de escuta e como poderia se dar a incidência política. Nós não queríamos fazer apenas um trabalho assistencial, mas um trabalho de amparo e de virada de chave. Construímos em abril de 2020 a Feira Solidária e Agroecológica, uma feira quinzenal dentro da comunidade. A feira trabalhou muitos valores, a sororidade, o cuidado com o outro e com a outra e o ato de compartilhar, além de também despertar o interesse de alimentos já menos esquecidos ou desvalorizados, trazer assentados, agricultores familiares da reforma agrária para dentro da comunidade para um café com prosa, para conversar, para falar de terra e de direitos. Uma frase minha que é batida, mas que eu gosto de dizer é: “a batata roxa tanto enfeita o prato como vai pra debaixo da terra”, porque as pessoas se motivaram ainda mais para plantar. Esse plantar também veio como resposta para nós trabalharmos em uma área verde. O trabalho de preservação ambiental dentro de uma comunidade carente é ir de trás para frente. Ninguém vai deixar de trabalhar, de fazer sua faxina para plantar uma árvore, mas elas deixam de fazer essas coisas para ir para a cozinha produzir um alimento, para ir para um quintal e plantar, para se juntar para fazer xarope. Foi importante para entender mais de perto essas fragilidades, me entender como parte disso e como a gente vira potência. A pandemia causou muitos danos, perdas, muitas vidas se foram por falta de um socorro imediato, por falta de uma casa melhor, por falta de água – e por isso tivemos que fazer a campanha da cisterna. A falta de alimentação de qualidade foi muito impactante, uma vez que as crianças sentiram falta da merenda escolar, que é uma comida diversa, tem 30% de origem da agricultura familiar. E com a pandemia, tivemos esse desafio de apresentar uma cesta agroecológica, não foi em paralelo porque nós ainda não estávamos em articulação para as doações da Ação da Cidadania e do PACS, mas a gente investiu em agricultura familiar porque sabíamos para onde o dinheiro estava indo e o que estávamos comendo, em um momento em que mais precisamos de nutrientes. Essa frase foi permeando as entregas, o interesse das pessoas e fortalecendo de fato a soberania alimentar e nutricional. É claro que não estamos falando de uma história de amor onde só tivemos grandes frutos, mas estamos falando de árvores frutíferas em que mesmo que o fruto não nasça agora, ele ainda vai nascer. Falar dos desafios da pandemia é pensar nossa existência enquanto coletivo de autogestão, enquanto essa formação e troca que nós temos com os nossos parceiros e parceiras. É pensar em como a autogestão no território fez toda a diferença na pandemia. Sabemos que quando um projeto vem é muito bom, com valor alto e às vezes não conseguimos movimentar de uma vez, mas sabemos que o que paga as nossas contas e o que vai gerar um território de bem-viver aqui dentro da favela, no nosso aquilombamento, é a autogestão, são outras alternativas de geração de renda, de autonomia, de troca aqui dentro da comunidade.

Ação coletiva do Centro de Integração na Serra da Misericórdia, no Rio de Janeiro


Instituto Pacs: E sobre a vacinação, como está esse processo na sua comunidade?

Ana Santos: As pessoas estão indo se vacinar. Tivemos um ponto muito crítico por estar em uma comunidade que ainda não é reconhecida pelo poder público, então não tínhamos acesso à saúde. Foi uma luta, as lideranças fizeram encontros, conversas e atendimentos aqui quinzenalmente. As pessoas estão indo acessar a vacina, está acontecendo uma campanha muito forte nos grupos de WhatsApp. Todos os postos de saúde aqui estão aplicando, o que por um lado é bom porque acelera o processo de imunização da população, mas por outro acaba sobrecarregando a equipe de saúde que não tem uma equipe extra para fazer esse serviço. Claro que se a gente for avaliar o formato da vacina, ele mais uma vez não prioriza o trabalhador e a trabalhadora ou os professores, mas dentro dessa lógica muitas mulheres aqui conseguiram se vacinar antecipadamente por causa das comorbidades. Eu já tomei a primeira dose da vacina. É bom que quando uma pessoa se vacina e o outro já sabe, a informação circula. Poucas pessoas tiveram reações à vacina aqui na comunidade.

Ação coletiva do Centro de Integração na Serra da Misericórdia, no Rio de Janeiro


Instituto Pacs: Quais são as atividades em curso no momento?

Ana Santos: Estamos na gestão da Feira Orgânica de Olaria. Estamos realizando os encontros de quintais junto com os agricultores de reforma agrária, diretamente com o Cosme do Coletivo Terra. É um encontro de quintal por mês com duas visitas. Temos a oficina-ação no quintal e o mutirão. Nós também realizamos o trabalho com a cozinha coletiva que nasceu com o nome “Mulheres em Ação”, muito fortalecida pelas ações da pandemia e também pelo histórico de atuação do CEM nas cozinhas. Temos a escolinha de agroecologia, que atende as crianças com aula de reforço escolar, atividade ambiental e com propostas de atividades culinárias. Também realizamos um trabalho com as mulheres com o tema da alimentação, com o diálogo direto com o SUS, projeto que é inclusive uma parceria com o Instituto PACS. Ano passado não deu para acontecerem as atividades que planejamos, mas Aline esteve aqui e já planejamos coisas novas, inclusive dia 28 é a próxima atividade. Tem o trabalho de plantio no espaço, de revitalização da terra, uma mini agrofloresta, canteiros de plantio que ainda estamos iniciando. Estamos nessa nova sede há um ano e obra do nosso espaço, que é o que tem tomado a maior parte do tempo. E também se aventurando em uma associação de moradores percebemos que não tem como trabalhar a questão ambiental descolado da cidadania. Trabalhar essa assistência também nos desperta outro olhar pelo território, em relação a preocupação de como chega a água, luz, a estrada, como nos relacionamos, como a Serra da Misericórdia cresce de maneira agroecológica, que se mantém o mínimo de verde em uma moradia digna. Nós também estamos com dois projetos com a Fiocruz, um para formação de agentes populares de saúde e outro de territórios saudáveis e sustentáveis, com quatro eixos trabalhados, em  que o Instituto PACS também é nosso parceiro.

Ação coletiva do Centro de Integração na Serra da Misericórdia, no Rio de Janeiro


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