Conferência Internacional debate desafios e alternativas coletivas para a soberania financeira na América Latina e Caribe
Os três dias de evento reuniram cerca de 80 pessoas, de 16 países da América Latina e Caribe, na Casa Cultural do Povo Brasileiro, em São Paulo (SP).
Por Flaviana Serafim e Jucelene Rocha
A “Conferência Internacional Soberania Financeira: dívida, exploração e resistências” proporcionou o encontro de organizações sociais e populares, ativistas, pessoas do setor acadêmico e comunidades afetadas pelo sistema de endividamento e financeirização, na América Latina e no Caribe. Durante três dias, de 23 a 25 de outubro, o grupo compartilhou reflexões e discutiu alternativas de soberania, bem viver e defesa dos corpos e territórios na região.
“Essa disponibilidade de recursos para poder sobreviver no dia a dia é um desafio significativo, principalmente para as mulheres, os jovens, os negros, para a população que está na luta em disputa pelo seu território. Por isso a Conferência é também um momento para podermos nos reunir para debater, transformar, ouvir, conhecer”, diz Martha Flores, secretária executiva da Rede Jubileu Sul/Américas (JS/A), uma das organizações realizadoras da atividade.
Sob a direção de Blanca Chancosa, indígena do povo Quéchua, uma das mais expressivas lideranças populares da América Latina, a mística de abertura “Altar de resistência dos povos” fez ressoar a ancestralidade latino-americana e caribenha, com cultura, espiritualidade e lutas. O momento destacou também a causa Palestina, além de fazer memória das mulheres e homens que seguem inspirando a caminhada de resistências para a abertura de novos caminhos emancipatórios no Sul global, como Berta Cáceres, ativista ambiental, co-fundadora do Conselho Civil Popular de Organizações Indígenas de Honduras (COPINH), assassinada em 2016, e Marielle Franco, mulher negra, lésbica, feminista, vereadora do Rio de Janeiro (RJ), Brasil, assassinada em 2018, que se tornou símbolo da luta pelos direitos humanos e fonte de inspiração para todas as pessoas que também lutam por justiça e reparações das dívidas sociais, especialmente com as mulheres negras e empobrecidas.
Rupturas necessárias
A plenária inaugural da Conferência abriu os debates a partir do tema “Os desafios da soberania financeira na América Latina e no Caribe hoje”, com participação de Martha Flores, do Jubileu Sul/Américas (Nicarágua), Talita Guimarães, da Ação Social Franciscana – Sefras (Brasil), Mercedes Canese representante da Campanha Itaipu 2023 Causa Nacional, (Paraguai) e Camille Chalmers, presidente da Plataforma Haitiana para o Desenvolvimento Alternativo – PAPDA (Haiti).
“A construção da soberania financeira se insere num projeto global de autodeterminação e de ruptura com a lógica da doutrina Monroe que ainda vigora no nosso continente, não só a transferência de riqueza através da dívida, mas através do repatriamento de lucros das empresas transnacionais, do comércio desigual e da fuga de cérebros. Portanto, existem múltiplos canais que mantêm essa hierarquia do sistema mundial”, denuncia Chalmers.
Na visão de Mercedes Canese, não pode haver soberania financeira do Estado se também não houver soberania sobre os recursos naturais. “Esse item é o principal do setor financeiro internacional: assumir a soberania, a riqueza natural do povo e assumir o trabalho humano porque o próprio setor financeiro não gera riqueza, mas sim o trabalho humano. Este mecanismo de apropriação da riqueza das nações tem que ser combatido com soberania financeira”, avalia.
“Quando dizemos soberania financeira queremos refletir sobre a capacidade dos Estados nacionais construírem suas políticas de desenvolvimento econômico e social de longo prazo. Perdemos essa capacidade desde a década de 1990 com o aprofundamento das políticas neoliberais, da subordinação financeira, reféns de políticas econômicas de curto prazo, por isso perdemos hoje nossa capacidade de planejamento”, destaca Talita Guimarães.
Formas de dominação
“Dívida, dominação e democracia” foi o tema do primeiro painel da Conferência, que destacou o contexto geral da dívida, suas formas de dominação e como a dinâmica de endividamento aprofunda e amplia as crises socioecológica e política na região.
“Além de nos saquearem e tomarem parte do território, os nossos avós tinham uma vida a trabalhar para os outros. Então agora nos deixem, já que as nossas propostas não são só para os indígenas. Não vamos desistir. Devemos continuar pelos direitos dos povos indígenas, mas também apresentamos propostas como país no qual nos sentimos diferentes, mas iguais em direitos”, afirma Blanca Chancosa (Equador), que integrou o painel.
“Desde os 1980, mas com aprofundamento nos anos 1990, todo ajuste é feito para garantir que as despesas públicas sejam contadas, tudo para pagamento da dívida”, criticou a economista Sandra Quintela (JSB, Brasil) em sua participação no painel.
“Nós do Caribe somos pequenos, mas resistentes. Quando a hegemonia dos Estados Unidos se sente ameaçada, sempre tratam de manter esse poder. Por isso [o ex-presidente] Donald Trump tratou de dividir os povos caribenhos, e sempre temos visto políticas de divisão, de ódio, de medo”,.destacou Kandis Sebro (Sindicato dos Trabalhadores em Campos Petrolíferos, Trinidade e Tobago) ao fazer sua abordagem no painel.
A programação contou também com momentos compartilhados em grupos para discutir temas fundamentais e dialogar, a partir de experiências de lutas em curso na América Latina e Caribe. Em três grandes grupos, as pessoas participantes discutiram sobre financeirização, crises e endividamento público, dívida ecológica e a arquitetura da impunidade e a descolonização do poder.
Agir e transformar
Entre as experiências compartilhadas estavam iniciativas como a Autoconvocatoria para Suspensão de Pagamento e Investigação de Dívida, da Campanha Nacional e Popular Contra a Dívida e o Fundo Monetário Internacional-FMI (Argentina); Megacorporações e mega grupos financeiros: fraudes geradas pelo setor financeiro privado, do Comitê para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo – CADTM (Colômbia); Estratégia comunitária de gestão florestal e territorial (MCST) para promover a soberania alimentar, povos indígenas, agricultores, pescadores, do CENSAT Água Viva (Colômbia); Experiência em defesa da água: Bacia San Simón no município de Mercedes Umaña, da Rede de Ambientalistas Comunitários de El Salvador – Racdes; A consulta nacional para deixar o petróleo bruto no subsolo do bloco ITT do Parque Nacional Yasuní desde a perspectiva da dívida ecológica, da Ação Ecológica (Equador); a luta dos Avá-guarani do estado do Paraná (PR), guardiões da água desalojados pela hidrelétrica de Itaipu (Brasil/Paraguai); a experiência de Cuba contra o império, com a partilha do Centro Martin Luther King; Sistema de poupança comunitária para mulheres que lutam contra a violência (DAUGE, México); Povos indígenas e mulheres diversas contra a ditadura no Peru, com a Marcha Mundial de Mulheres Macro Norte.
O trabalho destes mesmos grupos foi mobilizado a partir das provocações do painel “Alternativas, Estratégias e Ações Comuns”, que destacou alternativas, campanhas e iniciativas em curso no nível regional e mundial, bem como cenários de luta e perspectivas futuras. Desta forma, os grupos pontuaram uma série de sugestões de encaminhamentos para a continuidade das iniciativas compartilhadas e de outras que podem se fortalecer mutuamente na região e entre os países com desafios e construções afirmativas para povos e territórios em comum.
Neste último painel foram compartilhadas as experiências do Conselho de Educação Popular da América latina e Caribe (CEAAL, Brasil); da Rede Latinoamericana por Justiça Econômica e Social (Latindadd, Peru), da Rede Igrejas e Mineração (Colômbia), além de experiências da Rede Jubileu Sul/Américas, do Comitê para a Abolição das Dívidas Ilegítimas – CADTM e Alba Movimentos-Assembleia Internacional dos Povos – ALBA/AIP.
Solidariedade nas lutas
Durante a Conferência Internacional o grupo decidiu elaborar a declaração “Toda solidariedade ao Haiti”. A iniciativa foi fortalecida após o ato político que integrou a programação do evento e ocorreu no dia 25 de outubro, no auditório Vladimir Herzog do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP), no centro da capital paulista, com a presença de Camille Chalmers, da PAPDA e do Comitê “Defender o Haiti é defender a nós mesmos”.
No debate no SJSP, Chalmers alertou para a gravidade das múltiplas crises enfrentadas pelo povo haitiano há anos: insegurança alimentar, crise humanitária, intervenção militar, instabilidade político-econômica e institucional. Ele denunciou a gangesterização do Haiti por milícias financiadas com apoio dos Estados Unidos, e ainda o papel das políticas impostas por organizações, como o FMI, no cenário vivido pela população haitiana.
Declaração final
Ao final da Conferência Internacional, o grupo divulgou a declaração na qual cobram mudanças profundas nas políticas e estruturas que sustentam a lógica de exploração, endividamento e dominação. “Durante a Conferência, vimos como os nossos povos e países vivem sucessivas crises de governança, culturais, socioecológicas e estruturais, geradas a partir das políticas e empréstimos de grandes bancos, empresas e fundos financeiros multinacionais, apoiados por governos, parlamentos, poderes judiciários e instituições financeiras multilaterais. Denunciamos o sistema de dívida perpétua, juntamente com o sistema corporativo de comunicação, como uma das ferramentas centrais do processo histórico de dominação, pilhagem e dependência, que continua a se expandir e a se aprofundar de múltiplas formas”, diz um trecho do documento.
“Exigimos o repúdio e o cancelamento das dívidas que não temos e as devidas reparações integrais aos territórios, comunidades e povos que foram e são vítimas destes crimes. Levantamos a necessidade de articular forças de forma solidária para a construção de Soberanias Populares que se entrelaçam com a recuperação e fortalecimento das Soberanias Territoriais (…). Precisamos descolonizar o poder e construir um contra poder de baixo para cima, dos povos e dos territórios, enraizado no respeito pelos processos históricos, na memória, na ancestralidade e no trabalho político de cada território, bem como construir e posicionar uma narrativa contra hegemônica baseada em reciprocidade, complementaridade, coletividade e consciência de ser natureza”, afirma a declaração.
A “Conferência Internacional Soberania Financeira: dívida, exploração e resistências” foi realizada pela Rede Jubileu Sul/Américas (JS/A), Comitê para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM-AYNA) e Conselho de Educação Popular da América Latina e do Caribe (CEAAL).
Veja outras fotos da Conferência: https://www.flickr.com/photos/193435846@N02/albums/72177720312525834/with/53315098252/